Lua –de- mel

Preâmbulo

Desde a infância eu tinha um hábito alimentar que hoje esconjuro: gostar em demasia de sal. Para todo e qualquer prato, era uma boa pitada a mais. Eu, no meu total desconhecimento da ciência, não sabia que, posteriormente, o preço a pagar seria alto demais.....

Produzi, ao longo dessa encarnação, quase duas dezenas de pedras nos rins e hoje sou hipertensa.

Desenvolvimento

Então resolvemos nos casar. Foi só conhecer a realidade de vida do Nelson que compreendi que aquele seria, para mim, o marido para a vida inteira. Corretíssimo, de fina educação, respeitador e muito atencioso à família, era essa a pessoa que me faria estar no mundo de forma afetiva, inteira e feliz.

18 de dezembro de 1982 – casamento realizado na rua Frei Caneca. Igreja lotada com pessoas muito queridas, muitas vindas de longe. Até a minha primeira professora estava presente. A mesma igreja em que os avós do Nelson haviam se casado e exatamente um século após o casamento dos seus bisavós. Fiquei muito feliz quando soube desse fato, pois parece que toda a história familiar estava se associando de uma forma emocionalmente elegante e intensa. O convite foi desenhado nos moldes do convite dos meus avós, e eu, de vestido curto, de crepe indiano, como o da minha avó.

Resolvemos, então, sair de viagem sem hora ou destino predeterminado. Ainda hoje somos assim. O bom é ver “onde vamos parar”, perceber as novidades, o rosto dos habitantes do local, os gostos, costumes. Jamais com roteiro definido.

Resolvemos começar a viagem pelas Alterosas. Aquelas montanhas sempre mexeram com o meu imaginário, repletas de energia, provocando a intensidade dos sentimentos dos grandes poetas..

Felizes, fomos parar no sul do Estado numa localidade chamada Cambuí. Não sabíamos nada a respeito do pequeno município, mas isso não importava. Queríamos conhecer, perceber esse espaço novo para nós com um olhar descobridor de novas histórias e situações.

Na ocasião, a crise do petróleo gerava imensa instabilidade na economia. Não pudemos continuar seguindo viagem naquele domingo após o casamento, pois os postos ficavam fechados nos finais de semana. Resolvemos ficar por ali mesmo. Seria mais seguro. Eu achando a cidade o máximo. Quando eu saía da feia fumaça que sobe e apaga as estrelas eu entrava em estado de puro encantamento, percebendo a exuberância da natureza com mais nitidez e leveza. Apaixonante!

Mas vamos ficar por aqui. Amanhã a gente arruma mais gasolina.

Uma hora da manhã:

- “Nashinho, acorda, estou começando a ter cólica de rim”.

Santo Deus, e agora? Rápido, o Nelson foi à recepção pedir informações: "cadê o hospital da cidade?"

Assustado, com cara de sono, o rapaz da recepção começou a explicar: “É perto, é uma rua que faz assim”. E fazia um gesto com a mão tentando desenhar uma transversal.

-“Vamos juntos”.

-“Eu não posso sair daqui”.

-“Vamos juntos AGORA”.

O rapaz, o Chiquinho, se penteou muito bem. Parece até que usou Glostora. Lá foram os dois na frente do carro e eu atrás, sem posição, chorando, babando, desolada e com ânsia, muita ânsia.

NO HOSPITAL

Tiveram que realizar um parto primeiro.

Uma enfermeira me atendeu e meu aplicou uma injeção. Na hora comecei a alucinar e via uma liquidação de ternos no gramado da Cidade Universitária e mais uns tantos garfos gigantes sendo depositados ali por uma mão invisível. Roxeei. Só consegui ver o Nelson sacudindo a enfermeira. Ele de um lado da maca, ela do outro e ele gritando: “a minha mulher vai morrer”. Ela, nervosa, saiu para procurar algum recurso.

INTERNAÇÃO

Depois da injeção de Buscopan na veia acabei adormecendo. Aquele sono horrível, que a gente acorda pensando que não vai melhorar nunca.

Acordei e me deparei com cinco mulheres internas penduradas na cama, todas me olhando com curiosidade e espanto. Uma debruçada nos pés da cama e outras duas de cada lado.

-“O bem, o que aconteceu?”

-“Pedra nos rins. Onde está o meu marido? Eu quero sair daqui”.

-“Quem é o teu marido, bem?”

-“Você não conhece. Nós somos de São Paulo e estamos viajando de lua-de-mel.

-“O bem, você casou ontem e está no hospital hoje?”

-“É. Os meus rins...”

-“Não é rim não, bem. É porque você casou. E fica boa logo porque senão vem alguém e pega o teu marido”.

Eu não consegui sorrir até porque elas – todas – fizeram uma cara de susto que eu jamais tinha visto.

Pensaram que o Nelson fosse algum tarado.

Pouco depois ele chegou, preocupado, e elas - TODAS - pararam de falar e ficaram olhando fixamente para o meu marido, como se dissessem: “Pronto: o tarado chegou”.

Veio o café da manhã. Mais uma parte do inferno: uma caneca de café com leite morno e um pão de ontem. A funcionária depositou o café na minha mesinha de forma abrupta e grosseira, me olhou com um misto de desprezo e de deboche, como se eu fosse o ET de Varginha ou mesmo uma desavergonhada besta sexual.

Sem saber o que fazer , me deram alta, mas a coisa piorou.

Fomos procurar um outro médico, que foi logo perguntando:

-“o que aconteceu?”

-“Pedra nos rins, doutor”.

-“Não é isso não. Disse com um sorriso sarcástico. É porque você se casou ontem”.

-“Doutor, é pedra”.

-“Você está só muito nervosa com o seu casamento”.

-“Pedra, doutor, PEEEEDRRRRRAAAAA!!!!!”

Eu já falava em maiúsculo. Como ele não entendia, eu deveria ter desenhado.

Ele me receitou qualquer coisa, me mandou embora.

Depois fiquei imaginando a cidade toda falando e rindo do meu pobre marido. Imaginei a capa da Tribuna de CambuÍ, em letras garrafais:

TARADO ALUCINADO CHEGA Á CIDADE CARREGANDO A JOVEM ESPOSA EM ESTADO DESOLADOR.

Junto, a opinião do médico, das atendentes. Outros comentários vis na praça, perto da Igreja. O padre deve ter orientado solenemente os seus fieis para os próximos cursos de noivos. Meu Deus, que inferno!

Saímos da cidade e tentamos continuar mais um pouco a viagem. Em Pouso Alegre tentamos passear. Eu ia capengando, achando o mundo enjoado. Num dia de sol, um restaurante com um anúncio: “hoje, macarrão com frango”. Entramos, tentei me deleitar com aquela delícia, mas eu não estava mesmo bem.

Voltamos para São Paulo. Hospital de novo. Pelo menos me entenderam, me medicaram corretamente.

Depois de alguns dias, a desgraçada saiu. Bonita, marrom clara, lisa, infelizmente grande. Foi o dia mais feliz da minha vida.

Faltavam poucos dias das férias do Nelson. Então resolvemos só dar uma escorregada até Curitiba, uma viagem de trem a Paranaguá, chegamos a Joinville e conhecemos o fantástico Museu da Imigração e tivemos que retornar.

Nunca mais voltei a Cambuí. Ter outra cólica renal ali, eu hein?

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 11/12/2012
Reeditado em 12/12/2012
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