Calouros e veteranos na CEDAF-UFV

Central de Ensino e Desenvolvimento Agrário de Florestal – Universidade Federal de Viçosa (CEDAF-UFV), fevereiro de 1990:

Em frente ao alojamento, um grupo de veteranos cortava os cabelos de alguns calouros recém-chegados que, tremendo de medo, aceitavam pacificamente a inexorável ação das tesouras. No chão, os tufos de pêlos formavam pequenos montes negros e dourados que o vento, com seu sopro preguiçoso e úmido, ia espalhando aos poucos pela areia branca do pátio central.

Esses calouros logo seriam batizados. Eram adolescentes ainda, com 14, 15 ou 16 anos. No batizado, receberiam um apelido, dado por seu padrinho, um veterano do 2º ou 3º ano que, embora não passasse de um fedelho trazendo ainda vivas na pele as marcas da puberdade, tratava o seu afilhado como se fosse propriedade sua, castigando-o por qualquer motivo – como, por exemplo, não conseguir pegar o sabonete com a bunda na hora do banho –, mas também, sejamos justos, protegendo-o de alguns veteranos mais maldosos, quando julgava necessário.

Os apelidos dados pelos padrinhos tinham como objetivo ridicularizar e humilhar o calouro, que durante a semana de trotes era obrigado a trazer no pescoço uma placa de papelão com a sua identificação: apelido e padrinho. Na verdade, no batizado, o calouro recebia um NOME. Com uma arrogância que hoje me faz pensar nos antigos donos de escravos do Brasil Imperial, os veteranos determinavam taxativamente que, a partir daquele dia, o apelido do calouro passaria a ser “o nome feio que o seu pai e a sua mãe te deram”, diziam. O nome “verdadeiro”, nos três anos que ele moraria no alojamento e frequentaria as aulas no prédio principal, seria aquele dado pelo seu padrinho veterano na ocasião do batizado.

Assim, durante toda a semana, circulava pela CEDAF uma horda imensa de calouros amedrontados e sujos, com suas placas de identificação trazendo nomes como Cóia, Garrote, Jiló, Kabaço, Kaganeira, Kuqueluche, Mulambo, Ku d’água, Nematóide, Roitoba, Paracú, Naftalina, Tribufú, Kuaresma, Dopado, Jegão, Mirraxa, Nucú, Piranhoso, Rolinha, Sgoto, Supositório, Xitara, Xupão, Biskate, Furreka, Buneka, Kunotoko, Kuteko, Menorréia, Xupeta, Korrimão, etc.

No interior do alojamento, alguns calouros esfregavam os corredores com escovas de dente, repetindo em voz alta, sem parar, sob a fiscalização severa dos veteranos, a famosa ladainha: “Um ladrilhozinho bonitinho mais um ladrilhozinho bonitinho são dois ladrilhozinhos bonitinhos; dois ladrilhozinhos bonitinhos mais um ladrilhozinho bonitinho são três ladrilhozinhos bonitinhos...”. Outros calouros mediam a extensão de um corredor com palitos de fósforo; outros, no banheiro, eram obrigados a tomar banho frio e a gastar um sabonete inteiro, sem desligar o chuveiro; enquanto isso, no mesmo banheiro, vários calouros, completamente nus, eram enfiados num único boxe, onde tinham que tomar banho juntos – e coitado de quem deixasse o sabonete cair no chão: tinha que pegar, sem que ninguém arredasse o pé dali!

Nos quartos, as “brincadeiras” rolavam dia e noite. Uma das mais tradicionais era amarrar os testículos do calouro com um barbante apertado que, na outra ponta, era atado a um ferro de passar roupas, daqueles antigos, pesados. O calouro era colocado em cima de uma mesa, tinha os olhos vendados e era obrigado a segurar o ferro, enquanto os veteranos gritavam “Solta o ferro, calouro, solta o ferro...”, até que, para desespero do calouro, alguém batia em suas mãos e o ferro caía – felizmente, sem arrancar-lhe as bolas, pois em meio à confusão, conforme o combinado, alguém, com muito cuidado, havia cortado o barbante.

Outra “brincadeira” maligna, que foi largamente utilizada pelos veteranos na semana de trotes de 1991, era a “Máscara de Gás”. Na verdade, “máscara de gás” era como os veteranos chamavam o tênis com o chulé mais fedido e ardido do alojamento, uma coisa realmente assustadora. Estávamos em plena Guerra do Golfo e os bombardeios aconteciam quase todos os dias, lá longe, no Oriente Médio. Então, por que não trazer um pouco daquele clima de guerra para os quartos da CEDAF? Foi o que aconteceu. Quando um “avião inimigo” se aproximava, os veteranos gritavam para o calouro: “Alerta Vermelho, calouro, Alerta Vermelho! Coloque a máscara de gás!”: e ele era obrigado a encaixar o tênis no nariz e na boca, de forma que o ar não entrasse, e respirar fundo, várias vezes, até o Alerta Vermelho passar. Alguns chegavam a passar mal, vomitavam, e eram levados à Enfermaria.

No refeitório, durante toda a semana, os calouros só comiam arroz e feijão, pois carne, doce de leite e outras iguarias fresquinhas, produzidas na própria escola, iam direto dos bandejões deles para os dos veteranos – simples assim: “Calouro, passa pra cá esse doce”; “Calouro, esse frango aí é meu, põe aqui”. E eles punham, é claro. Ai de quem não pusesse. E ai também de quem não fosse buscar suco para os veteranos ou de quem se recusasse a servir-lhes mais polenta ou salada e, às vezes, até a dar-lhes comida na boca, picar sua carne, palitar seus dentes e sentir seus arrotos.

Voltando do refeitório, a caminho do alojamento, os calouros eram frequentemente bombardeados com sacos ou bexigas de água gelada, que estouravam em seus pés ou, como era muito comum, em suas cabeças desavisadas. Estas, mesmo aturdidas, assim que recebiam o primeiro golpe, ordenavam às pernas bambas de medo que corressem o mais rápido que pudessem. Das janelas do alojamento os veteranos gritavam: “Calouro burro, volta aqui, desgraçado!”.

Nessa semana de trotes, calouro não “batia o barro”, como se dizia. As fezes se acumulavam e endureciam no intestino, pois eram poucos aqueles que se arriscavam nos pequenos boxes sanitários semi-abertos, em frente aos chuveiros. O calouro que não aguentava, quase sempre era surpreendido por um veterano que, ao entrar no banheiro, normalmente gritava: “Quem tá aí?”. ‘Eu’. “Eu quem, desgraça? É calouro?”. ‘...’. Nesse ponto do diálogo, a musculatura anal do calouro já tinha trancado tudo lá embaixo. Não saía mais nada. “Quem é o seu padrinho?” ‘Fulano’, “Mas cê tá podre, heim calouro! Puta que o pariu... Sai daí agora... Se você não sair daí A-GO-RA, eu vou arrebentar essa porta e fazer você comer essa merda que cê tá fazendo aí dentro”. A conversa era mais ou menos assim.

À noite, os veteranos, organizados numa espécie de grêmio, verificavam se faltava algum calouro nos quartos. Isso se justificava porque, em decorrência dos trotes, muitos calouros fugiam para os matos circunvizinhos, para poderem dormir em paz, escondidos, já que as “brincadeiras” dos veteranos não paravam nem de madrugada.

Para as buscas nos matos, os veteranos organizavam verdadeiras matilhas de calouros que, amarrados com cordas e coleiras, e de quatro, tinham que farejar, como cães, os fugitivos da sua espécie, até encontrá-los.

No dia seguinte, por volta de 5:30 da manhã, grupos de veteranos invadiam os quartos dos calouros, convocando-os para a ginástica matinal: uma enorme sequência de flexões, polichinelos e abdominais, que só os calouros faziam.

Depois do café, quando todos se dirigiam ao prédio principal para as aulas, os calouros normalmente acompanhavam seus padrinhos, como escravos, abanando-os com as mãos, ou impedindo, com um pedaço de papelão ou de madeira, que o sol queimasse seus rostos. Às vezes um veterano se munia de dois calouros, que o carregavam e o depositavam, como um rei, na sua carteira. Era muito comum ouvirmos os veteranos negociarem uns com os outros: “Me empresta esse calouro aí”; “Vamos trocar de calouro hoje? Tô precisando de um mais forte, para limpar o meu quarto e carregar os armários”. Era como voltar ao período da escravidão, o calouro convertido em objeto, bem móvel do senhor, podendo ser vendido, alugado, emprestado.

Eu poderia ficar aqui horas e horas escrevendo sobre as experiências que eu vivi na CEDAF em fevereiro de 1990, e acredito que um livro poderia ser escrito sobre o que aconteceu nos anos seguintes. Ali, eu e mais três companheiros de Pará de Minas moramos por quase três anos, nos quartos 21 e 14 do alojamento (de fevereiro de 1990 a dezembro de 1992). Em dezembro de 92, em clima de muita festa, recebemos das mãos de Patrus Ananias, nosso paraninfo, o diploma de Técnicos em Agropecuária – com muito orgulho e satisfação, pois o curso não era nada fácil: tínhamos aulas de manhã e à tarde, e provas teóricas e práticas de arrancar os cabelos. Foram anos incríveis que, mesmo com todas as humilhações sofridas na semana de trotes, ajudaram a fortalecer em mim valores que, hoje, eu quero transmitir aos meus filhos: humildade, generosidade, amizade e solidariedade.

Dedico este texto aos meus amigos e companheiros de quarto na CEDAF-UFV, entre 1990 e 1992, Júlio César Vieira Leitão Gomes, Bráulio Abreu Campos e Ricardo Resende Barbosa.

Dedico-o também a todos os meus professores na CEDAF, em especial ao João Andrade Gonçalves, que me fez gostar de Matemática e que, com sua competência e humildade, mostrou-nos que não é preciso ser “Doutor” para ser um grande mestre; e à querida Maria Luiza Leão, a famosa Tia Lu, brilhante professora de Português, que nos enfeitiçava com o seu carisma e nos enlaçava com a sua generosa amizade.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 14/01/2013
Código do texto: T4083457
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