ORELHAS

Lá se fora ele...

Não tive aviso prévio, nem chance de negociação.

Não houve despedidas.

Só acenou para o curió.

Sumiu na esquina junto com os dois cães:

Um era o Mike e o outro era o Sheike.

Um marrom, o outro branco.

Um austero, exibindo a força da juventude,

O outro com o olhar humilde de quem já viveu o bastante para enfrentar o risco de ser valentão.

Assim desapareceram: um levando o outro.

Ele carregando os dois cães e os cães carregando uma alma.

Foram momentos conturbados nos meus doze anos

Não sabia de nada...

Ainda brincava com bonecas e devaneava no "meu corre-mão de laranja lima".

Plantava flores enquanto o Vietnã explodia.

Não sabia de nada...

Procurava formas nas nuvens enquanto gente sem nome era assassinada nos porões da ditadura.

Um sábado lindo de sol quente,

como ele próprio havia profetizado,

não sei se por brincadeira ou por obra daquele mistério que o fazia diferente dos outros pais.

Um tio que não conhecia...

Sei lá, criança não presta atenção nas coisas mesmo.

Uma lágrima enxuta daqueles olhos azuis...

Onde será que foi parar aquele lenço?

Acho que foi lavado assim como seus olhos foram enterrados.

Nunca mais...

Eu não sabia de nada...

Morri de rir quando a vizinha trouxe um chá calmante

decorado com uma pulseira dentro.

Um desses copos que ficam de enfeite em cima do armário,

empoeirado,

e a gente esquece coisas dentro

igual a gente esquece pedaços da vida.

O curió morreu de tristeza uma semana depois.

Acho que não suportou a solidão

por não ter mais com quem conversar de dentro de sua prisão.

O Mike se jogou em baixo de um caminhão.

O Sheike, sempre o mais ponderado,

morreu de velhice.

Foi a testemunha muda dos últimos momentos do meu jovem pai.

Não é de tudo que me lembro porque nunca tive memória boa.

Ainda não sei de nada...

Quanto mais o tempo passa mais o meu coração chora.

Acho que o que eu queria mesmo era atribuir a ele a triste tarefa de me ensinar o saber. A gente tem dessas manias: é a desculpa pela própria ignorância.

Finalmente tenho outro cão

e, como em criança, posso enxugar lágrimas de saudade em suas orelhas. Sonia Dezute

sonia dezute
Enviado por sonia dezute em 18/01/2013
Reeditado em 30/03/2013
Código do texto: T4092431
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