LEMBRANÇAS 2

É delicioso fuçar bem no fundo das lembranças revivendo os tempos de criança. Minha rua era de terra. Rua Odorico, Vila Guarani. Todo mundo se conhecia e todos se cumprimentavam. As vizinhas trocavam pratinho de quitutes. O pão e o leite eram entregues nos portões pelo "seu padeiro", um português bem humorado que "dirigia" um cavalo a frente de uma charrete com um bagageiro onde trazia suas mercadorias. O pão era "bengala" e ele trocava garrafas vazias e bem limpas por outra cheia de um leite grosso que precisava ser fervido varias vezes. Ele chamava minha mãe de "Dona Eduarda". Nunca entendi porque Eduardo era o nome do meu pai, minha mãe sempre foi Alzira. Todas as crianças eram inocentes e isso se estendia ate a fase adulta. Não existia essa coisa de adolescente ou pré-adolescente. Ninguém ficava estressado, tão pouco em depressão. As pessoas caminhavam no barro e não reclamavam, puxavam água de poço e não sentiam dores nas costas. Colesterol? Triglicérides? Cuidava-se de porcos ou galinhas sem nem reclamação de odores ou barulhos. Não existia lixo, tudo virava adubo. Era a festa do granel nos empórios. Carregavam-se litros e sacolas em baixo do braço. Nunca se ouviu falar em grife, roupa boa era aquela costurada pelas nossas mães e os sapatos duravam anos e passavam de irmão para irmão. Os cães não tomavam vacinas e existiam para comerem as sobras, viviam livres de quintal em quintal sem cercas nem muro. Como as casas eram térreas, da minha janela podia-se ver o sol nascer detrás do morro do Barão e essa era a visão mais deslumbrante daquela vila que tinha tempo para assistir o sol sair da cama. Dali mesmo, a noite, vinha a lua de camisola branca admirar nossa ingenuidade, então dava vontade de atravessar aquela mata verde para que ela pudesse nos abençoar. O Barão era uma extensão de terra com uma casa amarela, próxima de onde passava o rio, e era símbolo dos devaneios daqueles que nos amedrontavam com estórias mal assombradas. Quando o vento soprava dava para ouvir árvores verdes e imensas murmurando num lugar cujos únicos habitantes eram os pássaros e corujas amigos dos lobisomens das noites de luar. Noutras noites nada se enxergava na imensidão negra senão uma única luz no horizonte bem onde o morro acabava e começava a Cidade São Jorge. Lá devia ser outro mundo. O meu ficava do lado de cá, onde a gente brincava na terra e nas noites de calor deitávamos no chão pra ver estrela andar. Alguns siriris sem asa que se punha nos postes para apostar corrida. Festa junina não faltava e, em volta das fogueira, contávamos estórias de fantasmas, daquelas de prender a respiração, até ficar roxo, esperando o desfecho aterrorizante. O céu era bem maior e as constelações piscavam chamando a gente de bobinhos. Ninguém acredita! Ninguém acredita! Nossas casas dormiam só com tramelas, as roupas amanheciam no varal e o homem do caminhão de gás encontrava o dinheiro embaixo dos botijões que ficavam nas calçadas, enquanto as senhoras donas de casa se ausentavam por algum motivo.

_ "Vamos Soninha, vamos buscar lenha lá no Barão".

Claro que eu ia, adorava ser útil e fazer coisas de gente grande e nessa tarefa a família se reunia e eu sempre valorizei família unida. Foi lá que eu fiquei com medo do trator. Aquele bicho amarelo! Aquele trator era do mal, desertou a terra, derrubou as árvores que se abraçavam, desabrigou os passarinhos, baniu os lobisomens. Cai no chão ardendo em febre. Não valeram os benzimentos, não valeram nem os médicos. Só valeu a Maria Helena cair de joelhos e as súplicas da minha mãe para Deus devolver a "bambina" dela do jeito que fosse. Como um vírus tão pequeno foi me achar no meu mundo perfeito?

Sonia Dezute

sonia dezute
Enviado por sonia dezute em 19/01/2013
Reeditado em 19/11/2015
Código do texto: T4092887
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