LEMBRANÇAS 9

Desde que comecei estudar era levada na escola de improviso. As vezes era no colo de meu pai, outras na garupa da bicicleta de meu irmão, até que meu pai construiu um caixote de madeira com rodas de bicicleta que valeu a felicidade da mãe. Porém, sabe Deus o que se passa na cabeça de uma criança, lá ia eu com os braços cruzados, de burro amarrado, querendo que o chão se abrisse para poder cair num abismo e nunca mais voltar. Minha mãe era só sorrisos...

O regime militar garantia pracinhas nas portas das escolas promovendo o bem estar dos cidadãos e no meu grupo escolar havia um. Era o colírio do mulherio que fazia questão de levar seus filhos até o portão da escola só para darem uma espiadinha naquele "pão de homem", como diziam na época. Imaginem o buchicho quando este abordou minha mãe, passou a mão no meu rosto dizendo "é um pecado uma menina tão linda andar numa caixote desses" e que ia "dar um jeito naquilo". Quinze dias mais tarde o marido da minha professora Dona Lourdes, apareceu com uma cadeira de rodas na porta de casa. Não é que o soldado conseguiu arrecadar dinheiro entre os professores ? Ele não era só um pão de homem, foi um anjo que se arrebatou dos "céus da ditadura" me presenteando com liberdade.

Apesar de tudo eu odiava a escola. Uma vez fiz xixi na terra e me lambuzei toda de lama salgada, outras vezes ficava histérica, chorava e gritava até não poder mais. As vizinhas achavam que eu tinha "problemas" e me comparavam com a Lela. Seu nome era Eleonora, loiríssima, educadíssima e importada da Itália.

_Olha só como ela é boazinha.

O mundo lá fora me assustava, então eu me retraia. O professor me punha sentada no fundão da classe, junto com os meninos, e, na hora do recreio, ficava sozinha. Nunca fui aluna brilhante e meu pai cobrava: _Sonia, sua obrigação é comer, beber, dormir e estudar.

Mas eu gostava mesmo era de limpar a casa, lavar, passar e cozinhar. Aprendi fazer tudo ajoelhada ou na cadeira de rodas. Gostava das coisas "bonitinhas e arrumadinhas".

Meu professor vivia me chamando de "lesma" e "tapada". Levei muitos tapas na cabeça. Pode parecer violência nos dias de hoje, mas era prática comum na época. Esse foi o professor que me carregou no colo para dentro e para fora da classe, assim como para a porta do banheiro onde a Dona Aurora merendeira me pegava, levava para dentro do banheiro e muitas vezes limpou minha bunda. Reprovei o terceiro ano porque operei e passei quatro meses no gesso.

Quando terminei o quarto ano meu grupo escolar foi demolido. Comecei a 5a série operada com um enorme gesso na perna. Não pude frequentar porque havia uma escadaria sem fim no prédio novo, então perdi mais um ano.

No ano seguinte tivemos que enfrentar o novo diretor que dizia ser, minha mãe, uma pessoa egoísta querendo queria levar seus problemas para a escola. Foi uma briga boa até que o pai, pacientemente, tomou a frente e fez o diretor recuar. Quarenta degraus de uma escada que permanece nos meus pesadelos. Apesar de tudo foi a melhor época de minha vida de adolescente porque estudava igual a todo mundo.

Minha Escola Estadual de Primeiro Grau "Profa Ondina Rivera Miranda Cintra", onde reencontrei a menina do "cabelão" que tinha cortado o rabo de cavalo. Amigas de assuntos intermináveis. Nossa percepção de mundo era a mesma, pois descobrimos que éramos aleijadas mesmo e, por isso, amargaríamos muitas decepções pela vida. Nossa amizade nos permitia minimizar um pouco os infortúnios. Éramos cúmplices em tudo, porém ela levava vantagem sobre mim porque era bem magrinha e sempre tinha alguém disposto a carregá-la no colo. Sem dúvida era bem mais simpática. Eu estava desenvolvendo uma postura agressiva, tentando, em vão, me defender do mundo. Não aguentava mais responder a curiosidade dos outros "porque você é assim?". Comentários que nos valeu o jargão "assinzinha".

Quando resolvíamos colar nas provas era muito divertido. Numa de ciências, da professora Miriam, eu "assoprava" a resposta "pelos e mucos". Já corrigida, sua folha veio com um enorme ponto de interrogação. Ela havia entendido "pelolo e pu".

–Mas Mô, além de "assinzinha" você ainda é surda!

Eram tantas gargalhadas entre nós que uma vez fiz xixi na calça já estando dentro do banheiro. Não consegui segurar e chorava de tanto rir.

sonia dezute
Enviado por sonia dezute em 22/01/2013
Reeditado em 19/11/2015
Código do texto: T4099003
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.