LEMBRANÇAS 11

Em casa não consegui dormir de dor por conta das cunhas de madeira no gesso para endireitar meu joelho. Faziam fendas no gesso e introduziam pauzinhos de madeira em forma de triângulo. O osso recém quebrado cedia chegando, ao poucos, na posição desejada pelo médico. Toda vez que lembro do Dr. Fausto vejo ele rindo gostoso porque eu era grande demais e meu pai era tão baixinho.

Minha salvação durante meus dias de dores era meu vizinho adolescente, o Cuca, que passava as tardes sentado aos meus pés tocando piano, fazendo de meus dedos o teclado. A gente ouvia música ou assistia televisão, então esquecia da dor. Não gostava da noite. À noite eu não tinha o Cuca. A noite trazia a dor.

Quando tiraram meu gesso deparei com três ferrinhos enfiados no meu pé, iguais palitos em sanduíche. Não sei como suportei tirá-los a sangue frio. Meu pai enfiou um lenço na minha boca dizendo "morde filha" e saiu do box da sala de curativos. Guardei um dos ferrinhos como prêmio de consolação. Fiz, naquele dia, o pior trajeto da minha vida. Desde o hospital até a porta de casa os buracos se atiravam embaixo da ambulância. Pior ainda foi passar da maca para o sofá e ali eu fiquei quase uma semana sem ninguém poder encostar. Tocar piano não resolvia. Só pedia por remédio. Fazia xixi em um pano. Graças a Deus não fazia cocô porque não comia. Até que um dia meu pai encheu nossa banheira (dessas que hoje tem em borracharia) num canto da cozinha. A água bem quente. Com a ajuda da mãe do Cuca, Dona Carmen, me "juntaram" e me enfiaram naquela água abençoada. Eu fedia e um verme apareceu boiando afogado naquela mistura de água, lágrimas, esperança e fé. A dor foi passando chegando à quase nada.

Daí para frente sempre simulava um resfriado na véspera das cirurgias. Na manhã que o médico me visitava eu tossia, espirrava, ficava rouca. Voltava para casa com a decepção de minha mãe pois era difícil arrumar vaga no hospital. Deu certo uma vez, duas, três. Acabaram com a minha brincadeira me encaminhando para operar as amídalas. Assim eu não ficaria tão doente da garganta. Não sei se consegui disfarçar minha cara de tacho. Já estava ficando mocinha, com onze anos tinha postura de mulher, e me garantiram que operando a garganta emagreceria. Queria saber quem inventou essa mentira! Enfrentei uma anestesia local para não sentir cheiro de éter nenhum. O médico bateu no ombro de pai dizendo que "tinha uma filha de coragem". Bem feito pra mim.

sonia dezute
Enviado por sonia dezute em 22/01/2013
Reeditado em 19/11/2015
Código do texto: T4099090
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