Perdem-se livros

Experimente perder uma coisa. Proposta estranha, certo? Até porque, muito pouco ou quase nada se perde de propósito.

Quando eu era criança, minha mãe costumava se esconder de mim quando saíamos. Eu, filho único, um gordinho criado em apartamento, criado em meio período por “vó”, entrava em pânico. Não sei se ela brincava disso por algum prazer sádico, arrependimento pela maternidade ou para ver se eu saberia me virar caso acontecesse de verdade de eu me perder. Passados mais de vinte anos, ela perdeu algum dinheiro em sessões de terapia pelas quais tive de passar para superar os inúmeros traumas de infância que acabei desenvolvendo.

Perder outros itens como chave, carteira ou celular também é complicado. Em todos os casos, temos de bancar os detetives, lembrando por onde passamos e até mesmo especulando possíveis suspeitos. Nunca perdi as chaves de casa, mas se isso acontecesse, psicótico como sou, certamente ficaria imaginando encontrar no ato da minha chegada em casa algum estranho sentado no meu sofá, bebendo da minha Coca-Cola na minha caneca Bazinga! e jogando meu querido Playstation 3. Também jamais perdi minha carteira. Se ela sumisse, dinheiro não seria problema, visto que sou professor e ganho pouco. Porém, ver a minha foto da carteira de identidade vagando por aí seria um problema daqueles. Quanto ao celular, os que já tive nunca sumiram. Meu aparelho atual é dos mais simples, apenas fala e ouve, e, precavido que sou, não guarda vídeos íntimos meus, até porque minha vida sexual não é das mais agitadas.

Ninguém tem a intenção de perder itens valiosos ou que tenham alguma importância. No entanto, há pessoas que perdem, de propósito, livros! O motivo é nobre: incentivar a leitura, de graça. Perder uma publicação deve seguir algumas regras, como colocar em algum local visível da obra uma etiqueta com um código. Assim, o felizardo que a achar pode ir até um site na internet e registrar seu achado. Depois de lido, o artefato deve ser perdido novamente. Dessa forma, cria-se um ciclo de leitores. Cabe lembrar que cada “dono” pode acompanhar via internet a trajetória das páginas que estiveram em suas mãos.

Assim que soube dos procedimentos, escolhi um livro em casa e resolvi perdê-lo de propósito. A obra escolhida foi “Hotel Atlântico”, de João Gilberto Noll. O local decidido para a perda foi o cinema Odeon, no centro do Rio de Janeiro, no dia da Maratona Odeon, evento mensal. Discretamente, deixei “Hotel Atlântico” sobre uma mesa no café. Prontamente, o segurança me chamou e a devolveu. Ele deve ter me achado no mínimo desequilibrado ao notar minha expressão desapontada. Passados alguns minutos, segunda tentativa: fingi esquecer numa poltrona do cinema. Em questão de segundos, uma jovem que mais parecia a personagem Velma, do desenho Scooby Doo (gente assim infesta esse tipo de evento), fez a “gentileza” de devolver o meu ainda pertence. Terceira tentativa... deixei a narrativa no banco da praça e saí rapidamente. Fiquei de longe, olhando. Surge um jovem trajando uma camisa do Flamengo. Ele olha o objeto com a estranheza de quem vê uma pessoa sentada numa calçada lendo uma gramática às seis da manhã e com o nojo de quem precisa evacuar em banheiro de botequim. Saiu andando.

Não pude ficar muito tempo olhando o banco, mas vi que alguns lá sentaram e apenas observaram o livro abandonado. Quase desfiz a brincadeira, tal qual minha mãe fazia quando eu era criança, mas achei melhor deixá-lo ali. Quem sabe alguém o adotava para dar continuidade à maratona.