O OUTONO DE UM NOBEL

- Rafael Alberti foi o último grande momento da poesia espanhola.

Quem afirma isso é Vicente Aleixandre, que está acordado desde as quatro da manhã, quando recebeu em sua modesta casa da Calle Wellingtoniana, no bairro de Moncloa, em Madri, a notícia de que havia ganhado o Nobel de Literatura. Estamos em outubro de 1977, mais precisamente no dia 22, mas faz um frio de inverno. Cercado de jornalistas (e eu era um deles), gente da TV e cinegrafistas, o velho poeta de 79 anos parece atordoado com toda aquela inquietação ao seu redor. Acuado num canto da sala, quase espremido contra a estante envidraçada. Vicente Aleixandre vai respondendo como pode à enxurrada de perguntas que lhe fazem. Seus olhos são de um azul baço, as faces muito pálidas, a voz pausada e macilenta, mas a cada pergunta a resposta vem lúcida, precisa e imediata. E, por vezes, galante, como a que deu à jovem repórter do El País, que queria saber dele o que achava do amor. Os olhos do poeta ganham por um instante um fulgor malicioso, e as palavras saem como que aveludadas:

- El amor es usted, tan bela...

Como o Nobel de Literatura lhe veio tão de surpresa (na véspera, seu nome sequer constava na lista dos mais cotados), o poeta não sabe o que irá fazer com ele e que modificações ele trará a sua vida até ontem tranquila. Mas é evidente que Vicente Aleixandre mostra-se atônito com a formidável premiação universal, que lhe chega de súbito e que parece ser por demais pesada para os seus ombros de quase octogenário. “O senhor esperava ser premiado?” “De forma alguma. Nunca me passou pela cabeça, particularmente neste final de vida, quando quase mais ninguém, aqui na Espanha e no restante do mundo, se lembra dos meus versos”.

E é ele agora quem pergunta às dezenas de jornalistas que o cercam:

- E vocês, caros jornalistas, podem explicar convincentemente por que o escolhido fui eu?

- E num sorriso triste:

- Duvido. Mas não devo mentir. Meses atrás tive conhecimento através de um amigo, cujo nome não quero citar, que meu nome fora um dos muitos propostos, um entre mais de cinquenta, talvez cem. Não levei em conta a informação. Até brinquei: “Você não é meu amigo. Que iria eu, neste fim de vida, fazer com tanta honra e tanto dinheiro?” Mas o fato é que muitos escritores e poetas mereciam mais o prêmio do que eu, aqui na Espanha e noutros países.

Um repórter pergunta se ele poderia citar alguns:

- Não, não devo. Citar uns e por esquecimento momentâneo esquecer outros seria praticar uma injustiça.

Numa pequena mesa no centro da sala os telegramas vão se acumulando e já formavam uma pequena montanha quando a entrevista ainda ia pela metade. É difícil perceber tudo o que Vicente Aleixandre diz em meio ao burburinho, ao espocar dos flashes, ao atropelo das perguntas.

- Posso afirmar, disse ele, que me formei lendo Antônio Machado, que para mim foi um mestre. E também li muito Ramón Jiménez. Mas descobri a poesia bem mais tarde, quando comecei a ler Ruben Dario. Até então eu era um leitor de prosa e detestava poesia. Tinha dezoito anos quando me encontrei, numas férias de verão, com um rapaz da minha idade, que ficou surpreso quando eu lhe disse que não lia poesia, embora soubesse de cor trechos inteiros de novelas de Pio Baroja. O moço emprestou-me um livro de Ruben Dario. Então deu-se o milagre. Ou seja, aconteceu o meu encontro com a poesia, uma aliança que dura até hoje.

Agora é minha vez de perguntar, e quase grito:

- O que é para o senhor a poesia, como a definiria?

Resposta:

- A poesia é a mais legítima e confiável comunicação entre os homens. A maneira mais profunda e eficiente de conseguirmos entender a intrigante realidade da vida.

Ainda há mil perguntas a serem feitas, mas é visível o cansaço do velho poeta. Sua aflita secretária, Ruth Bolsoño, autoritária e categórica, acaba com a festa.

- Agora basta! Don Vicente precisa descansar. Não esqueçam que ele é um velho, que acordou de madrugada, e que sequer ainda fez o desjejum.

E vai nos expulsando, sorridente mas imperativa, do bangalô da Calle Wellingtoniana, toda ela guardada pela imperturbável e vertical vigilância dos ciprestes de um verde carregado, o verde do outono.

Joel Silveira
Enviado por Hugo Heringer em 27/01/2013
Reeditado em 31/01/2013
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