Ninguém volta atrás

Não sei se já perceberam. Hoje em dia ninguém mais volta atrás. O sujeito nega a própria lei da gravidade mas não volta atrás. Observem uma discussão qualquer. Pode ser uma dessas que ocorre no Facebook. Acontece um fenômeno interessantíssimo no Facebook: por lá só há especialistas. E, sendo assim, só há verdades eternas e absolutas sendo ditas. Nem Salomão, em toda a sua glória, se revestiu como o sábio de rede social. Também acontece essa coisa extraordinária: quando confrontados dois desses especialistas, um está majestosamente certo e o outro está miseravelmente enganado. Em tudo. Não há uma mísera e escassa concessão ao rival. Se parece exagero, acompanhem a progressão dos argumentos nessas discussões. E tentem se lembrar de um único caso recente em que alguém, em uma discussão, foi convencido de que estava errado e voltou atrás.

Há uns dois anos eu li uma crônica do Artur da Távola. Volta e meia eu cito essa mesma crônica. Foi um daqueles textos essenciais que marcam uma vida. Pois o Artur dizia que a "opinião" não é mais do que uma das primeiras reações que se tem diante das coisas. Expressa um sentimento e um julgamento inicial, a primeira coisa que passa pela nossa cabeça. Por nascer tão prematura, a opinião não consegue dar conta dos vários componentes de uma realidade. Nela não há espaço para as contradições, portanto. Isso não deveria ser um problema, desde que encarássemos a opinião como parte do processo pra chegar até a verdade, e não a verdade em si. Para Artur da Távola, opinar é apenas manifestar uma impressão, supor uma realidade, discuti-la e, se for o caso, retificá-la. É tudo muito bonito, mas o que nós fazemos é nos agarrar à nossa própria opinião (impressão) como um bezerro ainda não desmamado.

E por isso, por nos agarrarmos às nossas opiniões, ninguém volta atrás, e pior: ninguém chega à conclusão nenhuma. Voltemos ao Salomão de rede social. Digamos que um deles tem uma opinião e que, desgraçadamente, é totalmente oposta ao de outro. São, portanto, duas manifestações superficiais - perfeitamente válidas, mas ainda superficiais. Por ser uma opinião, significa que ainda há contradições não resolvidas. Pois bem. Os dois sabem perfeitamente disso, mas então acontece essa outra coisa admirável: só reconhecem as contradições do outro. Fazem questão de apontá-las. E se livram daquelas apontadas para si como se fossem uma barata seca. Já que, naturalmente, nenhum deles vai conseguir convencer o outro dessa maneira, em determinado momento um deles se cansa e desiste de chegar à verdade, alegando coisas como "Cada um tem a sua opinião, eu tenho a minha".

A opinião compromete ao infinito, dizia Nelson, o Rodrigues. E somos realmente escravos das nossas opiniões. Talvez tenhamos medo de que voltar atrás abale o nosso prestígio - podemos parecer incompetentes. E tem ainda a questão da coerência. Hoje em dia a coerência é mais sagrada que uma vaca indiana. Podemos defender as maiores estultícies, desde que sejamos coerentes nisso. Mas é um equívoco achar que a coerência consiste em ser fiel à mesma opinião durante toda uma vida - ela parece ser resultado de como reagimos diante das novas informações que recebemos e das experiências pelas quais passamos. Transformando as discussões em mero confronto de opiniões, impedimos o nosso próprio conhecimento e fazemos com que todos os discursos se tornem válidos, bastando a cada um apenas escolher aquele em que mais acredita - embora teimemos em achar que estamos sendo racionais.

Com base em meras opiniões, se faz uma vida. E pior: se faz uma nação. Temos aí o caso de um Papa que renunciou. Podemos dizer que, diante de circunstâncias que lhe afetaram, ele decidiu voltar atrás. Há muita gente que só acredita em um Papa que continue a ser Papa ainda que cravado de balas. Exige-se o martírio alheio - um sinal de coerência. Não perdoamos quem não cumpre a sua missão até o fim porque nos parece covardia. Que vá adiante, não retroceda jamais, e então nos damos por satisfeitos. Pois eu deixo aqui a minha simpatia ao Papa - e não me importam os motivos para a sua decisão. Acho que não há mais muita gente disposta a renunciar ao que quer que seja. Eu e ele não temos mais a mesma religião - eu voltei atrás - mas deixo aqui os meus cumprimentos.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 28/02/2013
Reeditado em 28/02/2013
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