Chapéu de Português

Terça-feira de longas filas, ônibus lotados e um sol queimando na pele. O homem negro de beiços largos e cigarro de fumo trevo dependurado, calça chinelo com correias de cores diferentes em cada pé. Seu boné tem a cara de um cão estampado e um telefone de casa de rações para animais. Ele joga água com uma mangueira verde na massa de cimento com areia vermelha, de vez em quando nota que o Mestre de Obras se afastou para falar ao celular com uma amante, que confessou ter conhecido em um baile. Aproveitando o minuto de liberdade daqueles olhos possessivos, o negro que se alcunha de “orelha-sêca” corre até a sombra da marquise da construção e respira ofegante olhando os colegas que o acompanham. O Pedreiro não se importa, ou melhor, finge que não vê, pois é bem gratificado no final do dia com a conta do boteco paga. Do outro lado da rua o vendedor de salgados abria a estufa para entregar uma empada, o cliente vendo que o dinheiro dava pediu também um suco no saco, entre laranja, abacaxi, caju e goiaba escolheu o primeiro, para decepção de um dos peões da obra que tinha uma garrafa de cachaça escondida dentro da mochila foi imediata, precisava misturar para que o chefe não desconfiasse do cheiro e o demitisse como fizera ao Cearense que conferia materiais. Aquela era a parada consentida pelo Mestre de Obras, quinze minutos para o lanche e bater um papo de coisas acontecidas e das coisas inventadas que deixavam a cargo do Bombeiro, o sujeito criava tantas histórias que ninguém o conhecia por bombeiro apesar de lidar com a parte hidráulica, “pescador” era sua graça. O vendedor ambulante que se utilizava de uma bicicleta cargueira, levando na frente à caixa com os sucos e na parte de trás os salgados, ficava de longe apenas anotando o que aqueles homens esfomeados pegavam, para alguns depois do dia 25 aquilo não era apenas um lanche especial, era o sustento, já que o salário e algumas gratificações não resistiam até o dia 30, devido aos fiados no boteco da esquina, a feira na mercearia, os retalhos de carne e as carcaças de galinha no açougue, ainda tinha os medicamentos para auto-medicação que devia na farmácia. Mas o gordo e baixo Português gostava daquela desgraça em que os homens se metiam, aumentou as compras de mantimentos do mês e se transformou por usura em fornecedor de marmitex, a mulher caprichava no tempeiro e o dinheiro daqueles trabalhadores que já era pouco por conseqüência dos fiados, ficou ainda menor com mais este encargo. Mas numa destas segundas-feiras de ressaca e indisposição até para abrir a boca, o Orelha-Seca que tem uma cara de cachorro estampada no seu boné, com um numero de telefone de casa de ração para animais, já sabia que a amante secreta do Mestre de Obras era a mulher do Português vendedor de salgados, tudo porque no final de semana os dois se acharam de fazer estripulias proibidas justamente no longínquo motel em que o futuro chantagista fazia bico como vigia. Enfim, a vida continuou no seu ritmo normal o Português feliz da vida vendeu ordinariamente seus salgados sem se sentir incomodado com os cornos invisíveis enfeitando a cabeça oval. Aliás, normal para todos menos para o Pedreiro que não entendera a graduação meteórica do ajudante que trazia sempre no beiço largo um cigarro de fumo trevo dependurado, partir daquela data seria o Pedreiro de apoio, com as seguintes funções aprovadas e sancionadas pelo chefe Mestre de Obras: Observar e palpitar os serviços do Pedreiro titular sem necessidade de tocar em nada, andar pela obra verificando possíveis imperfeições e direito ao cochilo de 60 minutos após o almoço.