Sábado à tarde no Ipiranga

Desde a infância eu percebia o Ipiranga com um olhar adulto. Sim, com uma certa austeridade, sem espaço para grandes brincadeiras. Para mim era assim. Essa austeridade e as roupas nada coloridas, com casas sem violetas eram o retrato mais preciso das pessoas que eu conhecia ali: os parentes do meu pai.

Família de origem portuguesa, capaz de levar todas as dores e frustrações da vida a níveis insuportáveis e com poucos sorrisos.

Mas quando sorriam era interessante. Conseguiam se lembrar de alguma situação hilariante do passado em Franca ou Casa Branca e isso me dava algum alento, alguma esperança de que um dia eles poderiam ser felizes e não sentirem vergonha por isso.

Mas mesmo assim, eu amava o Ipiranga. O Ipiranga aos sábados é ímpar. É possível ver as pessoas sem pressa, os caminhantes fazendo as suas compras nos mercados sem a afobação provocada pelos gritos do relógio.

Poucas vezes visitamos uma das tias aos sábados à noite. Eu não via perigo e achava interessante o passeio. Mas o comum era a visita à outra tua aos sábados à tarde. Eu , curiosamente, sempre visitei o bairro sem sol e me acostumei com isso. E acho mesmo que para visitar essa parte tão interessante de São Paulo é preciso que o tempo esteja levemente nublado, sem aquele calor sufocante e longe também do inverno que nos convida a ficar em casa. Porque o Ipiranga é tão belo e tão recheado de história que é preciso que nada nos incomode no dia da visita.

Poder contemplar a fábrica Linhas Corrente, dos ingleses, onde meu pai trabalhou, e perceber os detalhes e toda a organização do casario no entorno, onde o operariado se apertava naqueles sobrados de dois dormitórios para viver.

Algumas ruas de paralelepípedo são imensamente poéticas, convidando qualquer fotógrafo apaixonado pela história a se por em prontidão, mas o interessante mesmo é registrar a imagem desse chão à noite e molhado por alguma chuva que teimou em cair com economia. O mercado me seduz e entro ali, rigorosamente todo ano, para trazer uma carne de porco bem cortada, o orégano para muitas e muitas pizzas de mussarela. Vem dali também o polvilho doce e o damasco para que eu possa passar uma grande parte do ano sentindo o sabor do bairro. E trago delícias da Chocolândia, papeis para embrulhar as trufas, o azeite de oliva português, algum doce diferente... mas tudo tem que ser dali, escolhido devagar, com cuidado e muito carinho... porque vem de um lugar com uma longa história social especialmente construída com trabalho do imigrante e de tantos outros migrantes, como o meu pai.

Exercito um olhar dos anos 50, 60, com a seriedade e o respeito típicos da época. Olho para as barbearias ainda existentes, imaginando as conversas com os fregueses, casos de futebol, de algumas saudades, das críticas às mudanças de valores. Mas não consigo localizar o espaço do barbeiro do meu pai, da vida inteira, na rua Agostinho Gomes.

O Museu do Ipiranga me inspira saudades, mas nem tanto. São as ruas, as pessoas, o mercado, as padarias... tudo isso me convida ao passado da construção da cidade, da luta do operário e do esforço da esposa para manter a casa em dia.

Acho obrigatória a parada na padaria de esquina da Silva Bueno com a Almirante Lobo. Com marido e filho nos sentamos ao balcão para comermos empada de frango com Sprite de garrafa. Lanche sagrado e imprescindível. Inenarrável a experiência de entrarmos numa padaria e ficamos próximos às frutas expostas para uma eventual vitamina mista solicitada por algum freguês, os salgados dispostos na vitrine aquecida e sempre alguns homens tomando alguma cerveja e falando do “curintia” ou do “parmera”, mas pode ser do tricolor também.

Sábado à tarde o Ipiranga é macio, sereno. Os transeuntes caminham com o rosto mais calmo e menos pensativo. Passeio glorioso, com cheiro de eterno e de gratidão pela existência.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 07/03/2013
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