Um quarto de hotel na linha do horizonte

Um quarto de hotel na linha do horizonte

Gosto da segurança que sinto quando estou em um quarto de hotel. Quando você fecha a porta do quarto e se atira na cama, você deixa os problemas lá fora. No quarto de hotel ninguém conhece você; você pode fazer o que quiser; pode até suicidar-se em paz se assim o desejar. Ou pode, simplesmente, não fazer nada. Num quarto de hotel ninguém pode tocar você. Ninguém pode dar ordens a você. Num quarto de hotel você pode ficar nu, que ninguém vai ver. Acho que a maioria das pessoas faz isso. Você pode aproveitar toda essa sensação de liberdade que um quarto de hotel oferece tirando toda a roupa, deitando na cama e pegando alguma coisa no frigobar. Num quarto de hotel você pode imaginar que ali é o seu quartinho de criança e pode até chorar sem constrangimento, se quiser.

Lembro-me, em especial, de um quarto de hotel em Manaus. Cheguei à cidade que ainda não conhecia para um trabalho de quinze dias. Era um sábado, próximo da hora do almoço. Meu contratante deixou para cuidar dessa questão de hospedagem na última hora e então não encontrávamos vagas em todos os hotéis que chegávamos. Havia um evento na cidade. Nem me lembro mais o que era. Rodamos de carro por umas duas horas. Nada. Nem nos hotéis medianos, nem nos mais baratos. As pensões já estavam lotadas. Então, não restou outra possibilidade ao me contratante (aquela altura já nervoso) a não ser procurar os mais caros. O único que tinha vaga era o Tropical Manaus, um luxuoso cinco estrelas a apenas 10 km do centro da cidade e porta de entrada para a Floresta Amazônica. Entre as comodidades; três restaurantes com cozinhas tradicionais e internacionais, duas lanchonetes, um bar americano com música ao vivo, quadras de tênis, futebol, voleibol, duas academia, três piscinas, uma equipe de entretenimento e até um jardim zoológico e um jardim botânico com espécies raras da Floresta Amazônica.

- Você não se importa de ficar aqui até segunda-feira pela manhã, quando esse evento já tiver terminado? Perguntou o homem tentando inverter a situação como se aquilo tudo fosse um incomodo. Talvez fosse pra ele, que continuou - Então mudamos você para outro hotel mais próximo do local do trabalho, no centro da cidade, perto de tudo.

Olhei para a tabela de preços na parede enquanto o recepcionista ainda explicava sobre outras comodidades. R$ 950,00 à diária do quarto que eu acabava de receber as chaves, ou melhor, os dois cartões eletrônicos; um para a porta do quarto e outro para o cofre privativo. Ainda estava longe de ser o quarto mais caro. Consegui me despedir do já arrependido contratante com a verdadeira desculpa de que a única coisa que queria naquele momento era um lugar para descansar da viagem com conexão em Brasília e direito à emoção e pânico de um incidente com o trem-de-pouso do avião.

Enquanto o carregador levava minha bagagem para o quarto, fui até um dos restaurantes. Pedi um prato típico da região. Costelinha de Tambaqui. Uma generosa porção que veio acompanhada de arroz solto e branquinho e um purê de batatas que de tão aromático exalava um perfume saboroso com a fumacinha que subia da travessa. (Até hoje ainda sinto aquele cheiro, aquele gosto) para harmonizar, escolhi um vinho branco alemão sem me importar com o preço, afinal, as despesas seriam pagas por meu contratante. Não houve espaço para a sobremesa, por isso, depois do café decidir subir logo para o quarto.

Quando entrei, a primeira coisa que fiz foi puxar as cortinas e abrir os enormes janelões que davam para a floresta. O cheiro da selva e os raios solares do fim de tarde invadiram o quarto. Nesse momento tirei toda a roupa e fiquei ali por um tempo, imaginando-me um índio a correr pela selva amazônica. Até que o sol se pôs e os primeiros trovões da chuva da tarde me despertaram de uma espécie de transe consciente. (Em Manaus chove todas as tardes entre quatro e seis horas. As pessoas costumam marcar seus compromissos para antes ou depois da chuva). Fechei a janela, mas não a cortina. Começava a entrar um friozinho da brisa que vinha do rio anunciando a chegada da chuva. Puxei a escrivaninha para próximo da janela, peguei meu computador e comecei a escrever um conto que me veio à mente. Tem um amigo meu que diz que para a escrita fluir bem você deve estar à vontade na hora de escrever, sem terno e gravata, sem roupas e sapatos que possam ser incômodos e apertados. Ali, eu estava totalmente despido, ou seja, totalmente livre para escrever e percebi que o texto fruía realmente livre, leve e solto. Quando terminei a chuva já havia cessado e eu nem me dera conta. A noite jazia alta. Tomei um banho e vesti uma calça só para receber na porta do quarto o sanduiche que havia solicitado a cozinha.

Acordei com o sol invadindo o quarto às seis horas da manhã do domingo. Desci para tomar um reforçado café. Depois voltei ao quarto. Livrei-me das roupas novamente e passei a revisei o conto que havia inscrito. No domingo pedi o almoço e o jantar no quarto. Fiquei lá aproveitando a tranquilidade do meu aconchegante quarto de hotel, lendo alguns livros, pensando na vida. Já no começo da noite, depois da chuva, eu estava debruçado na janela, observando a imensidão da floresta, entorpecido pelo cheiro da terra molhada. Fui despertado por uma folha que caiu no fio do horizonte. Meu olhar novamente avançou no vazio da floresta e deixei a imaginação fluir e, ao mesmo tempo em que me divertia em pensamentos, me angustiava saber que na manhã seguinte deveria deixar aquela maravilhosa segurança e privacidade do melhor quarto de hotel em que já estive.

A noite passou rápida. Quando desci meu contratante parecia mais feliz. Mesmo depois de ter pagado a alta conta. Perguntou-me se aproveitei as comodidades do hotel. Respondi que não vi nada além das paredes do meu quarto. Ele ficou espantado e ao mesmo tempo frustrado. Provavelmente em meu lugar teria ido à piscina, sauna, academia, aproveitado a festa no bar do restaurante, o salão de jogos, a massoterapia gratuita, os passeios de barco pelo rio, as expedições pela floresta acompanhada dos guias profissionais do hotel... Expliquei que preferia essa tenebrosa linha das sombras da minha imaginação, o que normalmente já me mantém muito entretido por longos períodos, mesmo que sem entender ao certo, sem saber exatamente do que se trata essa confusão de vida, sem grandes noções para compreender os lugares onde estive... Minhas viagens começam sempre em um quarto de hotel...

Depois do primeiro dia de trabalho, já instalado em um hotel bem mais modesto, sai à noite para jantar, passeei pelo centro. Nos outros dias fazia o mesmo. Trabalhava até a hora da chuva. Tomava meu banho durante a chuva e sai depois para jantar e visitar os pontos turísticos da cidade, mas sempre voltava ao meu modesto quarto de hotel, que já me era tão aconchegante quanto o outro, tirava a roupa toda e me punha a escrever, só que de cortinas fechadas, pois, minha janela, agora, dava frente para um pequeno prédio residencial.

Marcelo Nocelli
Enviado por Marcelo Nocelli em 08/03/2013
Código do texto: T4178361
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