Os Senhores do Mundo, quem são?

Chove muito na cidade do Rio de Janeiro e também chove muito em Niterói, bela cidade onde vivo desde a melhor parte de minha infância. Eram quase dez horas da manhã, mas a ansiedade parecia coisa de meio-dia. É que entro às oito e meia no trabalho. Nenhum mestre zen conseguiria ficar alheio a tamanho atraso; deveria, mas isso é muito difícil e, quando conseguimos tratar desta forma a correria do mundo, somos talhados de vagabundos e irresponsáveis. Somos educados para servir e, servir bem, com assiduidade e pontualidade. Ainda somos, em nossa maioria esmagadora, verdadeiros escravos; apenas o patrão de outrora mudou de nome, hoje se chama “salário”. Finalmente a menina que é paga para ficar em minha casa, a tomar conta de meus dois pimpolhos chegara. Esta sim, uma verdadeira discípula de um mestre zen qualquer. Olhou-me, sorriu-me bem desprovida de qualquer preocupação e dirigiu-se ao banheiro, a fim de diminuir ainda mais os panos que lhe cobriam as suntuosas curvas. Eu... Bem, pus-me imediatamente em direção à porta, correndo feito uma vaca louca à procura de seu bezerro perdido, precisava disparar minhas intenções nas intenções de meus compromissos. Não tive muito tempo para prestar atenção em nada no mundo que não fosse o ônibus, o trocador do ônibus, o ponto, o Catamarã, que faz a travessia Niterói-Rio, enfim, nada desviou minha atenção da porta do local onde ganho o meu pão-de-cada-dia – aliás, depois que compro o pão me sobra muito pouco.

Ah! Enganei-me! Minha atenção foi desviada sim, durante o percurso. Estou acabando de ler um livro delicioso – ao menos para quem aprecia o “metiê” do futebol – “O Nosso Futebol”, este é o título do livro. Seu autor: Fernando Calazans. Trata-se de uma reunião de crônicas do excelente escritor, que diariamente nos presenteia com suas belas e cativantes palavras nas páginas de esportes do jornal O Globo, do Rio de Janeiro. Faltavam apenas quatro crônicas para eu terminar com minha leitura, não podia esperar mais. Assim que me espalhei num dos macios assentos do Catamarã, que me conduziria na travessia da esplêndida e super poluída, Baía da Guanabara, pus-me a desfolhar meu livro na intenção da última crônica lida. Pronto, achei! E assim o mundo ao redor se desligou por completo, ante àqueles preciosos momentos de prazer que a leitura me oferecia.

Terminei com o livro quase simultaneamente à chegada do Catamarã ao Rio. - Todos para fora! Disse o Comandante. Mentira! Ele não falou assim, claro, ele disse: “Tripulação, abrir portas” Este “todos para fora!”, soava inconteste nas diversas consciências, companheiras de viagem, inclusive na minha. Chovia demais no centro do Rio. A chuva, com a devida exceção daqueles que dela se alimentam, seja para comemorar a fomentação de seus cultivos, seja para comemorar qualquer outra coisa, braços estendidos na direção do céu choroso, tende a limitar o campo de ação de nossos olhares toda vez que se precipita de forma mais frondosa. Guardas-chuva ao alto da cabeça, os olhares são obrigados a fitarem o chão, as poças e os pés dos outros transeuntes que passam ao nosso redor, vítimas das vontades de suas consciências, ou, vítimas do instinto que diariamente nos leva aos locais de onde enriquecemos nossos patrões. E lá ia eu, livrando-me dos pingos salientes, pulando poças quase intransponíveis, pedindo desculpas a não sei quem, pelos encontros indesejáveis dos guardas-chuva...lá ia eu. Percebi então, dentro dos limites de meu guarda-chuva, que ali, naquele pedaço de “meu” mundo, eu não era o senhor das ações. Percebi também que algumas indagações se faziam zunir, como se fossem mosquitos petulantes, daqueles que nos perturbam no melhor momento de qualquer sono: Por que tanta pressa, tanta correria? Por que sigo esses outros passos, como um daqueles seres que sem saber, caminham com seus desconhecidos companheiros na direção do próximo abate? Por que o resto do mundo, que não está no caminho de meus instintivos passos me interessa tão pouco? Nossa, quantos por quês! Respostas? Nenhuma que me convencesse a mudar o rumo de minhas trocas de pernas. Primeiro a direita, depois a esquerda e, novamente a direita e assim sucessivamente...lá ia eu, sem vontade de ir, nem de não ir, na direção do mesmo lugar de sempre. O mundo? O mundo acontecia ao meu redor, à revelia de meus pensamentos e de minhas dúvidas. Não sou eu quem domina os desígnios do mundo, tampouco sou eu quem parece dominar os desígnios de meu próprio mundo. Talvez minha necessidade de ter algo para por à mesa – a escravidão da qual falei ainda a pouco -, talvez minha irresponsabilidade com o bem maior que recebi Daquele que acredito ser o Criador... Pois é, passo meus dias acordado durante a maior parte deles, porém, estivesse eu dormindo e meu encontro com as coisas do mundo talvez fosse mais afetuoso. E assim íamos todos nós, passageiros da pressa e das agonias do dia-a-dia, sem querer, na direção quase que desesperada de um encontro tão quisto quanto um prato de comida após a ceifa da cana-de-açúcar. O mundo e seus desígnios? Não nos importa muito, o relógio sim, este era o senhor de todas as coisas.

Assim, 98% de qualquer população ativa deste país ou de um outro país qualquer, passam os seus dias, sem por estes realmente passarem, degustando, fazendo parte.

Chuva, Sol, murmurinhos, passos e outros passos, carros, sinais vermelhos e verdes, o ser humano esqueceu que está aqui para sorver o mundo e não o contrário. O ser humano esqueceu que tem o poder de orientar seus passos, seus atos e seus olhares para onde bem entender e não permitir que o mundo coloque diante de seus sentidos o próximo passo. Somos – ao menos deveríamos ser – os senhores deste mundo. Deveríamos provê-lo e protegê-lo, para que dele pudéssemos desfrutar com mais prazer. A sensação de caminharmos numa direção instintiva, com passos pré-determinados pelo cotidiano, tendo apenas o passo dado como horizonte, nos ilustra e nos dá a exata noção do que é viver apenas o presente, sem mesmo do presente tirarmos proveito. O passado e o futuro simplesmente não existem, e o presente, que se torna passado, passa sem que dele tenhamos lembranças. São poucos os realmente senhores de seus mundos. Neste momento, enquanto escrevo utilizando um pequeno espaço de meu dia de trabalho liberto um sorriso, e me sinto um pouco senhor de meu mundo, mesmo que não me sinta degustando dele. Apenas o fato de usar este espaço para expressar o meu pensamento e não o pensamento de uma planilha qualquer, já me torna um ser diferente desses que, agora que finalmente cheguei ao trabalho, consigo vislumbrar enquanto te digo algo que habita a entidade a qual deleguei a sina de meus passos: o meu coração, Este sim, o senhor de todos os meus mundos.