Ressentimento 2

Meu pai era um diplomata. Digo "era" não porque ele morreu ou porque ele não é mais. Eu simplesmente não o vejo mais. Faz muito tempo. Ele viajava muito, e nem sempre era a trabalho. Minha mãe nunca foi com ele. Ele nunca a chamou. No começo tudo bem. Era legal quando ele voltava com presentes e histórias! Nós sempre fazíamos um bolo. E ele sempre fez de tudo pra estar em casa em seis datas: nossos aniversários (meu, dele, e da mamãe), o aniversário de casamento, Natal e Ano Novo. Não é pedir muito, né?

Uma vez ele teve que viajar no mês do aniversário de casamento. O mês todo. Depois no mês do aniversário dele. Uma vez ficou três meses fora. "Mamãe, por que o papai não volta?". Ele começou a perder todas as datas importantes. Mãe e pai começaram a brigar. Eu só ouvia. Ele não trazia mais presentes. Não contava mais histórias. Eles assinaram vários papeis. Era o divórcio, como fiquei sabendo mais tarde. Eu fiquei com minha mãe. Ele já tinha outro filho. Um ou doi anos mais novo que eu na época. Eu tinha 10 anos...

Eu não entendia direito. Mas acabei crescendo sem pai. Não que tivesse feito direfença... Ele nunca foi presente. Oito anos mais tarde, recebi uma carta dele. Estava endereçada a mim. Eu li. Ele estava com um câncer e queria me ver. Tinha um telefone para contato. Não liguei. Nunca liguei. A única coisa que eu me preocuéi em relação a ele foi que o câncer não fosse "hereditário". Não era. Ele sobreviveu. Mandou outras cartas. Eu queimava as cartas. Até que um dia eu me irritei, e respondi: "O que foi? Seu outro filho te deixou?!". Ele não mandou mais cartas.

Ele simplesmente apareceu na minha porta. Queria me ver. Ver minha mãe. Fechei a porta assim que o reconheci. Ele continuou lá por mais uma hora. Por mais duas horas. Passou a tarde ali. Eu abri a porta: "Minha mãe morreu de desgosto. Eu estou saudável. Tchau.". Fechei a porta de novo. Ele foi embora.

Minha mãe morreu poudo depois de eu entrar na faculdade. Eu tinha 20 anos. Psiquiatria. Desisti. Fiz uma particular, sou legista.

Há dois anos, um jovem, dois anos mais novo que eu, apareceu na minha mesa. Ele havia se envolvido com tráfigo, gangues, drogas... Teve um fim comum para alguém como ele. Quatro pessoas vieram pra identificação. Dois eram do grupo dele, tenho certeza. Os outros dois, um distinto casal. Minhas suspeitas estavam certas. Aquele jovem tinha os mesmos traços marcantes do meu pai. O casal era ninguém mais ninguém menos do que meu pai e a esposa dele. Ele não me reconheceu. Mas eu o reconheci. Como poderia esquecê-lo? Nunca esquecemos o rosto de quem odiamos. Ele não me reconheceu. O jovem havia fugido de casa com 16 anos, se envolveu com as coisas erradas. Os dois choraram... Eu não. Já estava acostumado com esse tipo de coisa. "Depois da investigação o corpo será disponibilizado para vocês".

O enterro foi depois de um ano. Bem no dia em que faria doze anos da morte de minha mãe. Logicamente, eu estava lá. Cidade pequena, somente um cemitério... Aquela foi a primeira vez que eu visitava a lápide da minha mãe. Me sentei ali, apoiado na lápide. Eu queria conversar com alguém. Deve ter sido por isso que fui até lá. Não que eu pudesse conversar com ela... Não acredito nesse tipo de coisa. Estava realmente muito frio. Acordei no hospital, ligado a vários aparelhos. Uma moça estava ao meu lado, dormindo no sofá.

Eu não quis acordá-la. Comecei a pensar. "Será que eu... quase fui parar na minha mesa?" A enfermeira disse que sim. Se não fosse pela moça no sofá, eu não estaria aqui. Ela nem me conhecia. Me viu dormindo na lápide da minha mãe e chamou uma ambulância. A enfermeira saiu. Eu voltei a pensar. Se eu tivesse morrido, o que teria deixado para trás? Ódio. Somente ódio. Ódio do meu pai, porque ele traiu a família e foi embora. Ódio porque, minha mãe morreu por causa dele... Apenas ódio. Pensando melhor, minha mae não morreu por causa dele, mas sim pelo ódio que eu sentia dele. Tudo o que eu fiz na minha vida girou em torno disso. Tudo!

A moça acordou. Perguntou-me como eu estava. Me passou o telefone dela. "Qualquer problema me liga, certo?". Quando a enfermeira entrou de novo, eu pedi a ela que me trouxesse um telefone.

"Alô? Pai? Teria como o senhor vir me ver?"

Bekah
Enviado por Bekah em 23/03/2013
Reeditado em 01/07/2016
Código do texto: T4204487
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