DAS VISITAS NO SOBRADO

Algumas pessoas passam por nossa vida e mesmo que dela desapareçam, jamais são esquecidas. Principalmente se tal encontro tenha se dado na infância. Tenho comigo a lembrança, talvez um pouco distorcida pelo tempo, de um tio, parente distante, que vez ou outra nos visitava. Na verdade, ele vinha à São Paulo fazer compras na Vinte e Cinco de Março – para abastecer uma pequeno bazar que mantinha no interior de Minas Gerais – e como bom mineiro, para economizar com hospedagem e alimentação, ficava em nossa casa, com a verdadeira desculpa de unir o útil ao agradável.

Apesar de não vê-lo há anos, tenho ainda na memória a sua imagem; cabelos grisalhos em contraste com um bigode escuro, fios negros também lhe brotavam das orelhas e do nariz, olhos verdes que oscilavam entre a ironia e a ternura. Era sargento reformado da Polícia Militar, mas não sentia nenhuma saudade dos tempos de farda, e depois de jubilado, para se ocupar, resolveu montar o pequeno comércio, de onde os rendimentos, talvez não fossem suficientes nem para gerir a manutenção do próprio empreendimento que funcionava na garagem de sua casa, mas a boa aposentadoria lhe era suficiente, e se ali não somava dinheiro, ganhava em tempo e assim, atrás do balcão ou na porta da loja, informa-se das novidades, enviava e recebia recados, dava conselhos, receitava remédios e fazia disfarçadas campanhas políticas.

É bom deixar claro que os remédios que prescrevia eram apenas receitas caseiras, garrafadas amargas e uma ou outra simpatia que ele chamava de “Ciência popular” e insistia que nada tinham de mágicas, bruxarias ou religiosas, mesmo afirmando no final da receita: “mas não adianta nada se não acreditar, é preciso ter fé na cura”.

Quando perguntado sobre religião tio Ludovico dizia que todas lhe pareciam muito boas, mas ele tinha inventado para si, uma espécie de religião particular, apanhando de cada uma apenas o que lhe convinha, assim, por vezes ia à missa (mas saía durante o sermão), gostava da paz e da brevidade das orações no centro Kardecista, em momentos de aperto e desespero recorria ao terreiro de umbanda próximo de casa e, adorava entoar os cantos das igrejas evangélicas da região (conhecia todas), e quando perguntado se acreditava ou não em Deus, ele proferia que o seu Deus não era o bíblico, mas um Deus Natural que ele podia venerar todos os dias pela manhã: as montanhas que avistava ao fim da cidade, o sol, a lua, as estrelas, os rios, os mares e as hortaliças que ele cultivava no fundo de casa, tudo isso era o seu Deus.

É bom dizer também que as pequenas campanhas políticas, se resumiam a distribuição de santinhos e a intermediação das lamurias dos moradores e as propostas dos candidatos a vereador e até prefeito da pequena cidade. Ele dizia que era preciso militar em prol daquele que pudesse, de fato, ajudar a região a se desenvolver. Se o candidato fosse um conhecido, de preferência morador local, com certeza ia fazer alguma coisa e se não fizesse, seria cobrado. No mais, tio Ludovico repetia sempre que não gostava de se meter em política, que a lei era cheia de injustiças e que todos os governantes eram maus, porém, não convinha lutar contra eles, pois sempre podia ficar pior do que já está.

Outra fama que carregava tio Ludovico era a de discordar de tudo e de todos. Irreverente, opunha às opiniões da maioria sempre, prolongava pequenas discussões com argumentos nada convincentes em meio a gargalhadas... Depois encerrava a conversa dizendo que “se todas as pessoas concordassem em tudo, o mundo ficaria penso e acabaria tombando de lado”. Os amigos mais próximos diziam que ele discordava só pelo prazer da controvérsia.

Em suas breves visitas à nossa casa, meu pai tentava escapar de assuntos “mais” polêmicos, mas tio Ludovico ficava por ali, rondando, soltando uma ou outra frase que, tinha certeza, atingiria meu pai de alguma forma, e daria início ao debate. Por vezes meu pai, homem sério que era, desistia da conversa e se retirava da sala, enquanto tio Ludovico, bonachão, deitava no sofá, rindo. No dia seguinte ele acordava cedo e disposto, não tocava mais no assunto que havia suscitado a pequena discórdia, agia como se nada tivesse acontecido, tomava café cantando e falando muito, vez ou outra, soltava uma fagulha de provocação que pudesse, mesmo de longe, remeter a discrepância da noite anterior, mas sem dar tempo para diálogo mudava rápido de assunto ou contava uma piada ou uma notícia triste lá de suas terras, ou as duas coisas ao mesmo tempo, fazendo com que a notícia da morte de um parente distante provocasse o riso, mesmo que contido, até do meu pai. Depois do café ele saía para as compras e de lá ia direto para a rodoviária. Como chegava sempre no inicio da noite anterior, não passava conosco mais que algumas horas. Essas rápidas visitas aconteciam uma vez por ano, sem data certa e sem avisos por parte de tio Ludovico. Hoje me pergunto o que me encantava nele. É certo que nesse pouco tempo, ele sempre dedicava alguns minutos para me contar histórias, mostrar uma brincadeira antiga ou comum no campo, mas desconhecida na cidade, ensinar piadas que não aprendia em casa... Quem sabe, o segredo disso estava justamente nos olhos brincalhões, que ao pousarem em mim, se esvaziavam de qualquer ironia...