LEMBRANÇAS DE UMA TRAÇA MÍOPE - 2

Este ano a FLIP – Festa Literária Internacional de Parati homenageou Clarice Lispector. Li algumas matérias a respeito (da homenagem): resenhas, depoimentos, entrevistas.

Ao que parece, Clarice está em sua terceira fase literária. A primeira, que vai de Perto do Coração Selvagem até A Maçã no Escuro, é a fase de consolidação do seu trabalho, vencendo a estranheza de alguns críticos.

A segunda fase se inicia quando ela retorna definitivamente ao Brasil, depois de se separar do diplomata Maury Gurgel Valente. Nesse período surgem A Paixão Segundo G. H., Uma Aprendizagem – Ou o Livro do Prazeres, etc. Os livros de Clarice começam a ser traduzidos para outros idiomas e ganham destaque nos meios acadêmicos. Os intelectuais e a imprensa fomentam a construção do mito: a bela ucraniana judia, com sotaque nordestino, precurssora da literatura intimista no Brasil. Tanta badalação fez com que CL escrevesse o seguinte comentário: será que estou na moda?

Então chega a atual terceira fase. Aquele lado místico-existencial da literatura clariceana ganha um novo olhar, algo meio Era de Aquário, meio Paulo Coelho. A FLIP 2005 mostrou que o mito literário está ganhando ares de guru. Não são poucas as novas interpretações de sua obra, dando um enfoque de pessoa iluminada, que pode provocar insights na alma. (De certa forma isso não é bem novidade. Clarice na década de 70 foi convidada a representar o Brasil no Congresso Internacional de Bruxaria, em Bogotá).

Agora me pergunto: o Vaticano um dia irá canonizar a nossa mais famosa escritora? Acho difícil, por ela ter sido judia. Ou os seus textos irão ascender às prateleiras do Ocultismo, como Eliphas Levi, Helena Blavatsky, Gurdjieff? Ou vão descobrir que ela poderá ter vindo de Saturno, a mando de Ixtlan? – um dos seus personagens em A Via Crucis do Corpo.

Lembro a primeira vez que li um texto de CL. Eu tinha 14 anos de idade. Era uma crônica leve, onde ela narrava maravilhosamente partidas de xadrez com um japonês – e ela jurava que não sabia jogar e continuava ganhando. A situação ficou de tal modo constrangedora que Clarice se envergonha de si mesma, revelando a sua timidez-ousadia, força-fragilidade.

Depois que li, me perguntei: quem é essa mulher?

Uma pergunta, aliás, que sempre faço quando releio algum dos seus livros.

Raimundo de Moraes
Enviado por Raimundo de Moraes em 12/08/2005
Reeditado em 13/07/2011
Código do texto: T42139
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