DESAFOROS COTIDIANOS



Dia desses, convidado por um amigo, fui assistir um jogo de futebol amador, o conhecido futebol de várzea. Várzea, creio, venha do fato de que os campos de futebol amadores, sempre são construídos em vargedos, muito na periferia, facilmente alagáveis e que em dia de chuva, ou que tenha recém chovido, vira um lamaçal só.

E fui. Saímos mais cedo que o necessário. Chegamos ao lugarejo, ao campo e ainda não tinha ninguém. E agora José? Bom, não restou outra alternativa que não fosse procurar um bar para beber uma cerveja. Quem sabe uma pinga mesmo.

Só tinha aquele Bar, quer dizer, um boteco, no sentido mais pejorativo. Um rancho de madeira já envelhecida pelo tempo, enegrecida pelas intempéries. A grama ao redor, misturada ao mato, subia pela lateral das paredes, cujas tábuas já apresentavam buracos deixados pelo apodrecimento do tempo.

Mas tudo bem. Se tivesse que ser, que fosse. O objetivo era mesmo ter uma tarde domingueira diferente, apreciando a vida correndo na sua essência, na periferia mais longínqua. Paramos o carro bem defronte do Boteco e entramos. Por dentro, tudo de madeira, alinhamento e caibros de madeira bruta, eucaliptos, talvez. Sem forro. As telhas escurecidas, até apresentando gretas que permitiam ver a luz do sol no teto e os feches de luz entrando e batendo no assoalho.

O chão não era piso e sim assoalho de madeira. Tábuas largas, muitas com buracos, provocados pelas goteiras, certamente, além de largas frestas entre elas. Uma mesa de sinuca no meio, algumas mesinhas envelhecidas, com cadeiras de palha e no fundo um balcão de madeira. Na parede prateleiras expondo as cachaças, batidas e latas de cervejas antigas. Não vi whisky. Observei vodka, marca diabo, em garrafas pet. A esquerda tinha uma porta (só a abertura), com uma cortina de pano colorido, que cobria a passagem para o outro lado.

Atrás do Balcão uma jovem senhora, seios fartos apoiados no balcão, rosto rechonchudo, cabelos desalinhados e semblante sofrido, mas ao mesmo tempo alegre e simultaneamente sereno. Na frente do balcão, sentados em banquinhos altos, dois senhores, chapéu de palha na cabeça, barba sem fazer há dias. Um deles tinha na sua frente um copo de pinga pela metade. O outro estava apenas olhava e também nos olhou e sorriu, mostrando os dentes frontais que já não tinha.

Boa tarde. Saudamos. E fomos sentando numa das mesas empoeirada. A cadeira que sentei tinha um buraco na palha, fazendo minha bunda ficar querendo fugir pelo buraco. Pensei comigo: se tiver que soltar uns gases pelo menos tem saída fácil. Pedi uma cerveja, dois copos. E meu amigo pediu também um mercedinho, quer dizer, uma pinga das grandes. Ele gosta de uma cachaça e o ambiente era propício.

E a “garçonete” então saiu detrás do balcão e veio tipo malabarista com os dois copos e a cerveja numa mão e a pinha na outra. Daí que percebi que não só o rosto era rechonchudo, mas a barriga e os quadris também. Tinha pelo menos um metro e meio de cintura, pernas pitocas, tudo isso apoiado nuns pés pequenos, tipo 32, calçados com uma sandália daquela fajuta.

Ela depositou nosso pedido na mesa e voltou. Nisso o cidadão que estava sentado no banquinho alto e apoiado no balcão, levantou e veio em nossa direção. Veio, veio, cambaleando, apoiou-se na nossa mesa, pegou a pinga do meu amigo e, na maior cara de pau, de forma absolutamente natural, virou todo o copo de um só gole. Ainda estalou os beijos o atrevido. Meu amigo, um homenzarrão de quase dois metros já ia levantar para dar umas tapas no pinguço, quando eu simplesmente pus a mão em seu ombro e disse: calma. Calma! Olha onde estamos!!

Ele se recobrou e sentou. Pediu outra pinga e foi até o balcão pegar, segurando firme, para não dar chance ao manguaça sem desconfiômetro. O parceiro do atrevido, que estava bebericando sua pinga, então abriu a voz, para nos explicar que o seu parceiro era assim mesmo. Que era metido. Que no dia anterior já tinha apanhado uma surra por beber a pinga alheia. Mas, coitado, já não tinha mais dinheiro para sustentar seu vício, então fica aqui no bar, esperando um descuido dos presentes para matar a sede. Explicado o incidente e o ânimo do meu amigo refeito, concentramo-nos na cerveja, no ambiente. Bebemos aquela cerveja, pedimos outra. O pinguço atrevido de olho em nós. E meu amigo de olho nele.

A tarde ia seguindo seu turno. O sol lá fora era claro, forte, contrastando com o ambiente do boteco. Nós ali, bebericando a cerveja, meu amigo dando “umas tapas” na sua cachaça, enquanto esperávamos a hora do jogo. Os dois fregueses sentados silenciosamente no banquinho e a jovem senhora corpulenta apreciando a freguesia, com os fartos seios meio expostos, a mostra de quem interessasse. Mas ninguém se interessava. 

Era um silêncio só no ambiente. Por vezes se ouvia o zumbido de voos rasante de algumas moscas. A cerveja já fazia seu efeito em minha cabeça e eu já via as coisas daquele jeito tosco que o álcool forja. Meu camarada já até desviava os olhos do ladrão de pinga e vagava em pensamentos que nem me atrevia a tentar desvendar. Tarde malandra de domingo. O ambiente em si permitia e incitava a preguiça extrema e eu a curtia em toda sua plenitude. Mais um gole, um aceno a garçonete pedindo mais uma e os olhos na rua, no sol, nos buracos do assoalha, na pretume das paredes e semblante do meu amigo e atento aos olhos para não fecharem involuntariamente.

E nessa madorna fui surpreendido pelo novo freguês que chegava falante, fanfarrão. Estacionou a sua bicicleta na parede do bar, quase na porta e entrou, cumprimentando efusivamente a todos. E veio em nossa direção, em largos passos, andar divertido e já se apresentando, mesmo sem ser inquirido: Sou pescador aqui da freguesia. Sacou a carteira do bolso, tirou um papel e nos apresentou. Olha, disse, aqui está minha carteirinha. Sou pescador profissional. Profissional!!!! Não sou como esses aí – apontou os dois do balcão.

Achegou-se em nossa mesa e como não foi convidado a sentar ficou de pé, com as mãos apoiadas na mesa. Meu amigo segurou firme seu copo de cachaça, como se fosse um troféu, temendo nova invasão.
E continuou o discurso. Parecia um desses marqueteiros baratos.

- Sou morador aqui da freguesia há mais de 40 anos. Conheço todo mundo aqui. Aquele ali (apontando o bebum que tinha afanado a pinga do meu amigo) tá perdido na cachaça. A mulher dele foi embora com um garotão que chegou aqui. Também ele nem dá mais no coro. Agora vive assim, batendo ponto aqui no boteco, esperando que alguém pague uma pinga prá ele. E cuidado hein!!! Fiquem de olho se não ele bebe o copo de vocês.

- O outro (apontou o outro cidadão sentado no banquinho do balcão), era trabalhador o safado. Mas anda em má companhia. É bom pescador, mas a preguiça tá matando ele. O que pesca, gasta tudo em cachaça. A família tá se virando. Até a mulher dele tá se virando. Vocês entendem, não é? Tá se virando... Hoje se vira com um vizinho, amanhã com um forasteiro. Vira-se. Mas também, ele não marca presença, bem feito.

- Eu não!!! Sou profissional. De carteirinha e tudo. Tenho meu barco. Tá certo que não tem motor. Toco no remo mesmo. Mas sou profissional. P r o f i s s i o n a l!!!!

Foi quando a garçonete não se aguentou mais.

- Olha quem fala. Sai daí seu “garganta”. Esse aí – dirigindo-se a nós – não vale nada. É fanfarrão. Vem cá seu malandro. Vem pagar a conta primeiro, prá depois ficar contando vantagem. Esse, seu dotô, não vale o que come.

- Olha aqui tu, sua rampeira. Biscate!!! Essa aí, amigos, tá aqui de favor. Nem zona dá emprego prá ela. Nem zona. Nem na estrada ninguém quer comer ela. Nem por dez conto. Olha quem fala!!!!

Pensei que os dois fossem se pegar na porrada. Era chumbo trocado. Olhei o meu parceiro. Estava segurando a gargalhada. E nem eu me arriscava a rir, mas que dava vontade, isso dava. Ahhh se dava.

E a briga continuava...

- Peraí, quero ver se você é macho mesmo. Vou chamar a D. Sonia (soube depois que D Sonia era a Dona do bar).

E saiu pela porta com a cortina florida. Ouvia vozes vindo dos fundos. Certamente era a queixa da garçonete para a patroa. E pescador profissional nervoso. Aproximou-se da mesa de sinuca, pegou um taco e me convidou para uma partida.

- Sou bom nisso aqui. Campeão!!! Sou campeão aqui no pedaço.

Não completou a contação de vantagem e nem deu tempo de me encorajar para topar a parada e jogar com o campeão, porque a D Sonia apareceu no Bar. Era uma senhora morena, quase mulata, vestido florido longo, quase arrastando no chão.

- Quê tu tá fazendo aqui Tunico? Eu já não disse para você não vir aqui seu peste? Enquanto não pagar o seu fiado, não quero você aqui. E ainda fica ofendendo a minha empregada, seu estrupício!!! E dirigindo-se a nós, soltou sua metralhadora:

- Esse aí é corno. Ele sim é corno. Corno manso, domesticado.

- Para de ofender D. Sonia. A senhora não tem provas.

- Como não tenho? Eu vi! Vi com esses olhos que a terra há de comer. Sou testemunha, seu trapaceiro, corno manso. Eu vi o meu marido comendo a tua mulher. Tu esqueceu? Ele levou uma surra, com a minhas chinelas. E você fez o quê com a tua mulher? Fez nada. Fez nada. Tu é corno!!! E agora fica aí contando vantagem. Ofendendo minha empregada. Saiba que ela é distinta. Errou, mas está no bom caminho. Até está indo na igreja todo domingo.

- Passa daqui seu fanfarrão. Deixa minha empregada em paz. Deixa meus fregueses beber a vontade.

Pois que o pescador profissional simplesmente baixou a cabeça e saiu de fininho. Nem olhou para se despedir de nós. Trepou na bicicleta e se foi.

- Desculpa seu moço. Pode ficar a vontade. Aqui o ambiente é de família. Podem ficar a vontade e se aparecer águem prá incomodar, ela me chama. Estou ocupada fazendo pasteis para vender no jogo. Mas é só ela chamar que venho. Preocupa não!!!

Deu o recado e voltou a entrar pela porta, para os fundos. A moça garçonete voltou a apoiar os seios no balcão. Os dois fregueses cotidianos estavam encolhidos, olhos esbugalhados. Pedi mais uma cerveja e já adiantei o pedido de uma pinga para o meu amigo. O intrometido não se atreveu a olhar quando a garçonete veio nos servir.
Olhei meu relógio – 14:30. Olhei ao redor, rebuscando as gretas nas paredes, a cortina de tecido florido que balançava ao sabor da brisa que entrava pela porta. A mesa de sinuca envelhecida quieta e os dois manguaças calados, rabinho entre as perdas. Mulher danada a D Sonia. Impunha respeito mesmo.

Olhei a moça garçonete e viajei. Imaginei aquela mulher transando. Deus do céu!! Seria a visão do diabo chupando manga. Realmente o fanfarrão tinha alguma razão. Nem por dez conto, pensei. Mas pensei também que sempre existe um sapato furado para um pé fichado.

O pensamento circulava pelos acontecimentos que havia assistido. A D Sônia pegando o marido deitado com a mulher do pescador profissional. Imaginei-a arrancando o marido de cima da dona. Ele ponto as calças rapidinho, procurando os sapatos... E a cara da traidora? Lembrei da famosa frase “não é o que você está pensando”. Imagino que não cabia no caso. Certamente que não cabia.

Meus olhos voltaram para a rua. O sol brilhava, num contrates estranho com a quase penumbra do bar. Vi pessoas passando na estrada de terra, certamente a caminho do campo de futebol. Tá na hora – avisei meu amigo, que quase cochilava, favorecido pelas pingas e a cerveja.

Chegaram algumas outras pessoas no Bar. Foram sentando, tomando as mesas. Chegaram outras e outras e nós ali, apreciando o movimento. Eu lembrando do bronca da D Sonia no ‘pescador profissional” e corno assumido. Voltei a pensar no seu marido, coitado, saindo porta a fora, ainda pondo as calças e a mulher lhe malhando o lombo com o chinelo.

Vamos. Vamos embora, exclamou meu amigo, despertando-me. Paguei a conta, entramos no carro e fomos para mais perto do campo. Já tinha bastante gente ao redor da cerca que circundava o campo.

Sentamos num banco de madeira, apreciando o movimento e esperando alguém se aproximar e puxar papo. Certamente outras histórias viriam a tona e assim a gente enricava a vida com as histórias que a vida oferece.

E chegou um velhinho, duns setenta e poucos anos...

- Vocês não são daqui, não é?

- Pois eu joguei nesse time. Joguei muito. Era jovem, tinha viço. Bons tempos...

Tomara que não apareça a D Sonia para desmentir o velhinho em seu saudosismo. Vai que também seja corno.

- Eu pescava também...

Eacoelho
Enviado por Eacoelho em 14/04/2013
Reeditado em 15/04/2013
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