O LIVRO

Nasceu de parto normal numa manhã fria de agosto, numa maternidade pública, onde a mãe dividiu o quarto da enfermaria com outras onze mulheres. Era o primeiro filho mas perdeu o colo no ano seguinte quando nasceu o irmão, com quem teve que dividir os seios maternos. Nunca pode saciar a sua fome já que o pequeno precisava ser fortalecido. Ele não! Era forte e já podia ser tratado como o homenzinho da casa.

Na sua inocência infantil, nem percebia que era pobre. Nessa idade a gente nem entende disso. As roupas que usava eram semi-novas. Já as vira no corpo dos seus primos e vizinhos. Achava graça na época de inverno quando a mãe aproveitava as raras manhãs de sol para estender os cobertores velhos e surrados no varal. Aguardava o sol aquecer as mantas para pegar uma a uma as muitas pulgas que saiam de seus esconderijos nas fibras das cobertas, incomodadas com o calor do sol. Matava-as com as unhas e ria-se quando encontrava uma mais graúda, sobrevivente de outras manhãs de sol como aquela.

Festa mesmo fazia nas raras vezes que a mãe comprava os bifes e sevia no almoço. Eram três bifes. Dois cortados ao meio, cada metade servia a cada uma das quatro crianças. O terceiro bife, por inteiro, alimentava a mãe. O pai não! A mãe dizia que ele não merecia já que era o responsável por aquela miséria que viviam.

Como toda criança, brincou na rua. Empinou pipas, jogou gude, pega-pega, pula-sela, mãe da rua, esconde-esconde, balanço, gangorra... Fez estilingue, matou pássaro e fez guerra de mamonas contra a turma da outra rua, a mesma rua onde morava a primeira menina que fez seu coração bater diferente.

Estudou na escola pública do bairro. Seus livros, quase todos, aproveitados dos primos mais velhos ou dos filhos dos vizinhos. Todo início de ano as listas de livros eram trocadas entre parentes e conhecidos, como forma de encontrarem o precioso material de estudo.

O ritual era o mesmo. As mães passavam borracha nas respostas dos exercícios preenchidos à lápis pelos antigos donos, para que os filhos não encontrassem as soluções prontas. O menino sabia que seu livro seria repassado para seus irmãos e por isso deveria tomar cuidado com ele.

Às vezes, uma ou outra professora implicava com a edição do livro que usava. Algumas chegavam a puni-lo porque o livro não era o mesmo adotado. O nome e o autor eram os mesmos, mas os textos não estavam nas mesmas páginas que as professoras indicavam.

A solução que encontrou foi contar com a boa vontade dos colegas que permitiam que ele procurasse a lição passada e, por comparação, localizasse o texto exigido. Quando o texto era novo, só restava copiá-lo na íntegra enquanto o colega impaciente exigia a devolução do livro para que pudesse ir para casa.

Muitas vezes chegou em casa desapontado porque nenhum colega se dispôs a emprestar seu exemplar para cópia. Ficava sem fazer o dever de casa e, consequentemente, sem nota. Sonhava ser muito rico para poder ter seus próprios livros.

Teve o problema agravado quando mudou de escola para fazer o ginásio. Foi matriculado novamente em escola pública mas de um bairro chique.

Naquele tempo as escolas públicas eram exemplares. As professoras concursadas buscavam transferência para a escola mais próxima de suas casas. Assim, professoras mais pobres, que moravam na periferia, lecionavam nas escolas perto de suas casas. Professores de melhor padrão de vida lecionavam nos bairros onde moravam.

As professoras daquela nova escola eram chiques, muito bem casadas e muito bem preparadas para a função. Algumas viajavam nas férias para o exterior e tinham muitas histórias de viagem para contar, fazendo com que o menino sonhasse com neve, hoteis, outros idiomas, outros povos e costumes.

Os pais do menino providenciaram sua matrícula naquela escola porque queriam que o filho tivesse boa formação. Como tinham um conhecido naquele bairro usaram seu endereço no requerimento de matrícula. Um empregado da escola, vizinho da família do menino, se incumbiu de providenciar que sua matrícula fosse colocado na pilha das matrículas aceitas.

As professoras eram exigentes pois muitos dos alunos da escola eram filhos de conhecidas do bairro. Menos ele! Ele tentava omitir sua origem humilde. Mas era logo desmascarado quando seus modos denunciavam a diferença de educação.

Compensava o desnível social com aplicação nos estudos. Tirava as melhores notas e tinha comportamento contido. Quase não era notado.

A única vez que foi encaminhado à diretoria foi por causa disso: um livro. Havia uma prova marcada para a terceira aula daque dia, logo após o recreio. Estava apreensivo pois sua familia não teve dinheiro para adquirir o livro novo, adotado pela professora, ainda em primeira edição, lançado naquele ano. Nem primos nem vizinhos haviam estudado com aquele livro. Por sorte, a professora da segunda aula faltou.

Não desceu ao pátio como fizeram seus colegas de classe. Ficou em sala para estudar. Esperou que todos saíssem para, sorrateiramente, folhear o livro do colega que havia deixado seu exemplar displicentemente na carteira ao lado.

Entretido, não percebeu que o sinal soara e que os garotos e a professora entravam excitados. Os alunos corriam em algazarra para seus lugares. A professora atrapalhava-se com as folhas de prova que trazia nas mãos para distribuir. De repente, a acusação! Fernando Azevedo Filho, o aluno dono do livro, percebeu que ele lia seu precioso livro sem permissão.

Fernando de Azevedo Filho vinha de família de novos ricos que enriqueceram com o início da industrialização do país. Fernando era o colega que mais zombava do menino, pois todos sabiam que o menino pertencia a outra classe social. Fernando não lhe dava trégua em seus comentários maldosos e deprimentes.

Maldosamente Fernando comunicou o fato à professora que encaminhou o menino para a diretoria não permitindo que fizesse a prova.

Pela primeira vez na vida tentou se livrar da situação contando uma mentira em momento sério. Mentiu: contou ao diretor que acidentalmente o livro caíra ao chão e pretendia devolvê-lo assim que os colegas retornassem. Não chegou a ter tempo de anunciar o achado e foi logo acusado de roubo.

O olhar compreensivo do diretor o acalmou. O diretor disse que falaria com a professora para marcar uma prova extra, assim não ficaria sem nota. O menino enterneceu-se com a bondade do diretor.

O diretor perguntou-lhe se ele possuia uma daquelas canetas novas que as papelarias estavam vendendo. O menino acenou negativamente com a cabeça. Seu olhar demonstrava surpresa com a pergunta. O diretor abriu uma enorme estante de madeira, com portas de vidro canelado e dela retirou uma caixa repleta de canetas azuis, com o corpo moldado em plástico transparente. Ofereceu uma ao menino. Seus olhos brilharam. Anos mais tarde lembrou-se dessa cena de infância quando um de seus chefes ofereceu-lhe um charuto cubano para comemorar sua promoção. O menino retirou maravilhado uma das canetas e perguntou se era presente. Suas lágrimas ficaram contidas e represadas para o resto de sua vida quando o diretor lhe respondeu:

“sim, pode ficar com uma delas, assim você não precisará roubá-la de outro colega”.

Nas mãos do diretor estava o livro causador da punição. O livro foi aberto na primeira página. O dedo do diretor indicava o nome "Fernando de Azevedo Filho, 1960” escrito em letra de fôrma no topo da página.

Envergonhado foi para casa, tirou o uniforme da escola e correu para seu pequeno refúgio atrás do campinho de futebol onde chorou por toda a tarde.

Em cada lágrima um pedaço de sua alma escorria pela grama. Uma parte da sua inocência se misturava ao capim do pequeno jardim atrás do campinho de futebol.

Pensou na vida. Pensou no futuro ainda incerto. A única coisa que tinha de certo é que jamais passaria outra vergonha como aquela.

No fim da tarde teve coragem de levantar do seu refúgio. Voltou para casa diferente. Deixava atrás de si a infância e toda a fantasia que essa fase da vida nos trás.

Ao entrar em casa, resoluto, cabeça erguida, disse à mãe que iria procurar um emprego pois já estava próximo de completar quatorze anos. Tornara-se adulto! Naquela época era nessa idade que as pessoas iniciavam suas carreiras profissionais.

O tempo passou. A vida seguiu. A vida passou. Teve muitos empregos. Teve cargos importantes. Subiu na vida. Casou e descasou. Teve filhos. Ganhou e perdeu muito dinheiro. Teve todos os livros que desejou . Foi um colecionador de livros. Estudou linguas. Estudou técnicas. Aconselhou empresários ricos e famosos. Aconselhou políticos.

Por fim ficou idoso, não podia mais trabalhar. Seus olhos, cansados, quase não reconheciam as minúsculas letras dos livros que ainda lia.

Numa fria manhã de agosto, sentou-se na poltrona da sala de estar. Da gaveta da escrivaninha retirou um pequeno estojo de madeira e dele retirou uma caneta azul com o corpo moldado em plástico transparente.

Apanhou um livro que estava na gaveta onde guardava o estojo. Abriu o livro e leu na primeira página: “Fernando de Azevedo Filho, 1960”.

Lentamente, começou a rabiscar toda a primeira página com a caneta azul. Manteve intocável a inscrição “Fernando de Azevedo Filho, 1960”.

Passou para a segunda página e desenhou animais: cachorro, pato, cavalo, gato, tartaruga... Escreveu poemas nas outras. A cada página uma nova rasura até exaurir quase toda a tinta da caneta. Ainda restava um pequeno filete de tinta quando escreveu na última página:

“Por causa deste livro abandonei a infância e tornei-me homem. Por causa deste livro persegui fortuna na vida. Por causa deste livro vivi os meus melhores dias. Quero que fique entrelaçado em minhas mãos quando me deitar para o sono eterno”.

Poucos dias depois sua vontade foi cumprida. Filhos e netos se perguntavam da importância daquele livro para que acompanhasse o senhor em sua última viagem.

Movido pela curiosidade, um dos netos retirou docilmente o livro das mãos pálidas do avô. Viu um livro escolar comum, com a primeira página inteiramente rabiscada com tinta azul e apenas a inscrição “Fernando de Azevedo Filho, 1960”. Nas páginas seguintes mais rasuras: uma página com desenhos de animais: cachorro, pato, cavalo, gato, tartaruga...; em outra, poemas.

Notou que o velho papel que encapava o livro estava mais espesso na contra-capa. Havia algo entre a contra-capa do livro e o papel que lhe servia de proteção. Rasgou com cuidado a lateral do papel e encontrou um pequeno recorte de jornal já amarelado pelo tempo. Leu a seguinte manchete:

“Filho do industrial Fernando de Azevedo encontrado afogado na piscina da mansão”. O texto que se seguia não trazia nenhum detalhe importante, apenas que o menino era bom aluno e nadava muito bem!

O livro foi colocado de volta nas mãos do defunto. O neto olhou o rosto do avô. Estremeceu. Teve a impressão que os lábios do velho esboçavam um pequeno sorriso. Achou graça de si mesmo por ter tido aquele pensamento e voltou intrigado para junto dos amigos e parentes.

São Paulo, 16 de abril de 2.013.

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 16/04/2013
Reeditado em 17/04/2013
Código do texto: T4244279
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