Cigarro de Palha Russo

''Foi quando a bomba explodiu e senti o bafo quente da morte queimando meu rosto que soube que deveria ter feito mais pela minha mulher . Eu tinha uma aliança que nunca tirava , e não queria que os filhas da puta a levassem depois que eu tombasse , então a guardei no rabo onde ela ficaria perto de mim até os bichos comerem meu corpo ...''

O senhor Russo , como todos os chamavam , adorava contar essa historia para as crianças do bairro . O cara era meio louco , fanatico por guerra . Assistira a tantos filmes sobre morte e carnificina que poderia ser considerado um legista profissional . Depois de contar onde escondera o anel ele sempre nos mostrava uma argola dourada que jurava ser de ouro puro , mas não se parecia com uma aliança , mas sim com um enrolado de arame vagabundo . Alguns pais não gostavam muito que as crianças ficassem perto do senhor Russo .

'' Ele não passa de um velho tarado ''

Diziam eles . Mas não era nada disso , o velho era inofensivo , carente , provavelmente nunca se casara e ainda era apaixonado pela namorada de infancia . Claro que a gente sabia que a historia da bomba era mentira e que ele nunca pisou num campo de batalha minado ( se era feio , era por puro azar ) mas sempre foi um bom papo e nos servia deliciosas bolhachas assadas quentes com suco de limão batido . Lembro que meu unico bolo de aniversario foi o senhor Russo quem fez , ou melhor , comprou numa padaria . Era um daqueles bolos de fuba , tão leves quanto algodão , com uma cereja de um vermelho triste pousado sobre ele . Ainda posso sentir o gosto da canela e o sabor do leite com banana gelado que ele preparou para acompanhar presos nas minhas glandulas degustativas . Comemos ouvindo uns discos do Bob Dylan , sentados na sua varanda num final de tarde logo depois que sai da escola . Nessa mesma tarde ele enrolou dois cigarros de palha e me esticou um . Eu não sabia bem o que fazer com aquilo . Senti medo , nunca havia fumado antes . Era um bom garoto , podia se dizer . Tirava boas notas na escola , frequentava a igreja aos domingos e praticava futebol , mesmo sendo o ultimo a ser escolhido quando os garotos montavam os times .

'' Na sua idade eu fumava quatro desses por dia ''

Falou o senhor Russo , pondo na minha mão o cigarro de palha .

'' Isso acompanhado de uma boa dose de whisky faz de você um homem . ''

Não falei nada , so pus o cigarro na boca e senti o gosto forte do fumo lamber meu labios . Senhor Russo acendeu o seu , deu uma boa tragada e uma chama vermelha se fez surgir do cigarro , chama que ele apagou um com um assoprão cheirando a cerveja . Gostei daquilo , gostei da chama ardente e do cheiro de cerveja , mas quando fui pegar a caixa de fosforos sobre a mesa Russo acertou minha mão com um tapa .

'' Não va fumar essa porcaria aqui na minha casa . Fume na escola , num bar ou quando seus pais estiverem dormindo . Hoje em dia preferem que os garotos sejam maricas , então se descobrem que fumou isso na minha casa me botam na cadeia . Claro , numa cela especial para veteranos . ''

Guardei o cigarro numa carteira que na epoca era recheada com um baralho que usava para jogar burro , o unico jogo que sabia , hoje , nem mais esse sei . Não sabia o que estava sentindo naquele momento , pois ganhara meu primeiro presente de aniversario e comera o primeiro bolo . Foi incrivel , e mesmo sendo um pivete sabia que ali acontecia algo de especial que levaria para toda vida . A casa de Russo era bastante simples , tijolos com reboco podre em alguns cantos , o numero pintado a tinta que precisava de retoque ja a alguns anos , mas acredito que não se incomodava com isso por não receber muitas cartas , a não ser as de cobranças , pois os malditos cobradores são capazes de te encontrar no planeta dos macacos caso deva dinheiro a alguem que lhes pague para reaver a grana . Numa manha quente como o inferno deve ser de sabado , sr Russo mostrou a alguns garotos um velho album de fotografias , a maior parte em preto e branco , quase todas tiradas numa fazenda qualquer . Nela estavam sempre presentes um garoto magro de oculos enormes e nariz pontudo .

'' Esse sou eu . ''

Dizia ele apontando para o rapaz .

'' Nessa epoca eu dirigia tratores e domesticava cavalos de raça ''

'' Adestrava , o sr adestrava cavalos ''

Corrigiu um garoto que não me lembro o nome , so que fedia a alho o tempo todo .

'' Não , meu jovem , eu domesticava as bestas argentinas . Por acaso um de vocês ja viu um bom cavalo argentino ?

O animal e grande , acredito que algumas vezes maior que o proprio Deus . São animais truculentos cujo um coice seria capaz de dividir um homem ao meio . Mas infelizmente não é mais assim , hoje em dia conseguiram estragar até os bons cavalos argentinos ''

Uma das fotos tinha uma data escrita nela . 21 de abril de 1912 . logo depois Texas , EUA . Na epoca isso nada significou para mim , mas hoje me faz pensar se o garoto feio naquelas fotos era mesmo o sr Russo .Talvez fosse apenas um velho album de fotografias comprado em um bazar qualquer , ou até encontrado numa lata de lixo a anos . Eu ainda tinha na minha carteira o cigarro de palha quando uma ambulancia tirou alguma coisa de dentro da casa do velho. Era algo grande , dentro de um saco preto , havia ali tambem uma viatura . Era um dos domingos de missa . Perguntei a minha mãe o que estava acontecendo , pois era uma moleque pequeno e estupido , e ela disse que estavam recolhendo as coisas do '' velho vagabundo '' pois '' graças a deus ele havia se mudado '' .Bem , no fundo eu sabia que não era aquilo , de algum jeito sabia que alguma coisa ruim tinha acontecido na velha casa sucateada . Lembro que mesmo sabendo que não veria mais o sr Russo não chorei , porque o que eu sentia no momento era tão novo para mim como foi comer a primeira fatia de um bolo de aniversario . Naquela noite esperei meus pais dormirem , fiquei acordado até as onze e meia , porque eles costumavam discutir e se ofender e as vezes se espancar até quase as onze . A janela do quarto que dividia com minha irma dava para o quintal , saltei a janela com a carteira de baralho e me sentei na balança de corda montada na estrutura da area de serviços . era uma noite fria , as estrelas escondiam se tristemente sob nuvens cinzentas no ceu negro e nem mesmo as malditas moscas se atreveram a sair . Tinha um isqueiro que usava para botar fogo em pedeços de papeis e fazer pequenas foqueiras onde bonecos eram jogados vivos em duelos mortais contra monstros de durepox . Tirei da carteira o cigarro de palha , ja todo amassado e quebrado ao meio . Tentei por algum tempo juntar as partes com gravetos , mas o trabalho so fodia mais o cigarro , então decidi botar a metade que ainda segurava um pouco de fumo entre os labios , riscar o isqueiro e dar uma tragada ; fazer uma labareda surgir da ponta , e depois apaga la com um assopro de cerveja . Era burro demais para saber que so se pode ter um assopro de cerveja depois de beber uma ou se bebeu por muito tempo . Mas mesmo sendo burro sabia que não veria nunca mais o velho maluco do sr Russo , sabia que tinha perdido um amigo , sabia que as coisas não paravam por ali .

Bob Dylan - Dont Look Back

17/04/2013

16h47m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 17/04/2013
Código do texto: T4245642
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