O roubo da mandioca

Na calmaria da cidade interiorana, resolvemos naquelas férias de um dia ensolarado, colher algumas limas no quintal do vizinho. Sim, seria um roubo. Premeditado mas sem muitos detalhes. Não haveria ameaça, chantagens ou sequestro-relâmpago. Não faríamos reféns e nem colocaríamos fogo na casa. Naqueles 7 ou 8 anos de idade, a comparsa seria a minha prima, residente na rua de cima do lugar do delito. Duas ou três limas para cada uma e o crime hediondo estaria cometido em poucos minutos.

Evidente que essa atitude era corriqueira em cidades pequenas, casas sem muros naqueles anos 60, onde nem se falava em insegurança. Minto: numa noite, o pai dessa minha prima ouviu um barulho na sacada. Silenciosamente, o meu tio foi em direção à porta, levantou a tramela para que o meliante entrasse com mais facilidade. Quando o mesmo abriu a porta, o tio Carlos deu-lhe uma tremenda surra com a bengala que o seu avô havia trazido da Itália, ainda no último quartel do século XIX.

No dia seguinte ao roubo das limas, o dono da casa, cujo quintal havia sido tomado por duas vândalas qualificadas, foi à farmácia tomar uma injeção. Na nossa meninice, a falta de malícia nos fez ficar no mesmo ambiente e, com rapidez, o meu outro tio disse ao paciente:

“Ontem essas duas meninas roubaram frutas do seu quintal ”, dirigindo-se a nós com uma rápida flexão da cabeça. O homem não disse nada, mas a vergonha que eu passei me fez corar a ponto de doer a pele do meu rosto. Foi um ultraje, um sentimento horrível de vexame. Foi provavelmente a primeira vez que senti como se tivesse uma bolha de ar sacudindo o coração. Inenarrável a sensação!

Uma das situações mais duras que se pode impor a uma criança é a queima de etapas. Queimar etapas na vida significa deixar de ter o prazer único de cada ação, reação ou resultados do que se poderia ter obtido, caso a ousadia tivesse seu espaço próprio, no momento certo. Com o desenrolar da vida, passei a ter pós-doutorado em queima de etapas dadas as dificuldades de aprendizagem, de relacionamento, dificuldades financeiras e afetivas. Mas eu jamais desisti.

Lá pelas tantas eu me casei e pensei: agora vai. Vou resgatar todo o tempo que não foi, os risos que não tive, as músicas que não dancei, os desembaraços do cotidiano que me foram subtraídos pela minha história.

Num domingo meio nublado, estávamos na casa da minha sogra, junto da família da minha cunhada. Ela, natural das Alterosas, sem dificuldades em buscar alguma fruta ou verdura na casa da vizinha, disse para mim que no terreno do lado tinha mandioca e que ninguém colhia.

Feliz da vida, pulei o muro pela primeira vez nessa encarnação. Fomos buscar a mandioca abandonada, já um tanto cansada de, na sua solidão, ouvir os gritos da torcida organizada, pois, da casa da Vila Sônia, se ouve as manifestações dos torcedores no campo do São Paulo.

Foi uma colheita modesta. Eu estava aprendendo a puxar a raiz com cuidado, achando maravilhosa a experiência. Consciente de não estar lesando ninguém, pois a mandioca iria apodrecer, eu estava me achando uma pessoa dentro da normalidade, resgatando uma infância perdida, vivida durante um tempo num apartamento de fundo e tendo que tocar música clássica num piano que eu jamais abriria espontaneamente.

Entrando em casa dom o troféu, o meu sogro estranhou a cena.

- “Seu José, pegamos essa mandioca no quintal do vizinho. É, a casa está vazia, ele nem mora mais aí”.

Com a maior seriedade e olhar tenso, levantou o dedo para mim e:

-“No, no. Se querem mandioca, eu dou dinheiro prá vocês comprarem. Não se entra na casa do vizinho”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 19/04/2013
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