Maldade não tem idade

Foi num domingo nublado e frio, no sítio do meu pai, que tudo explodiu.

A família estava reunida para o almoço. Minhas duas irmãs conversavam com seus maridos na varanda, ouvindo ao fundo um concerto de Mozart. Tomavam cerveja preta e comiam rodelas de salaminho com limão, enquanto meu pai cuidava do jardim e minha mãe coordenava os trabalhos na cozinha.

Rui é casado com Alice, minha irmã mais nova. É professor de Química e tem 35 anos. Damásio, marido da Lúcia, a mais velha, é senador da República: 48 anos, arrogante e violento, mas com um atrativo que, para a minha irmã, faz valer a pena até os pescoções que ela ganha dele de vez em quando, bem como as amantes que ele carrega para todo lado: um patrimônio de mais de 100 milhões de dólares – o que contrasta cruelmente com a situação do meu outro cunhado, o professor, que há dez anos paga, a duras penas, o financiamento de uma casa na Caixa Econômica Federal, equilibrando o orçamento familiar sem a ajuda de ninguém, pois a Alice, como eu, é depressiva, tem síndrome do pânico e não trabalha (nem em casa).

Alice e Rui têm uma filha de sete anos, a Carolina, uma criança linda, mas triste – de uma tristeza de dar dó –, sem nenhum entusiasmo para a vida. É tão melancólica a pobrezinha, que quando eu lhe dou um chocolate ou um presente qualquer, ela sorri como se os músculos da sua face obedecessem a um estímulo meramente mecânico: como se um homem invisível lhe puxasse os lábios com duas ou três cordinhas e depois movimentasse, com outras oito ou nove, seus bracinhos frágeis na encenação de um abraço.

Já a Ludmila, de oito anos, filha do senador, é de dar medo: má até não poder mais (se é que eu posso dizer isso de uma criança de oito anos). Uma vez, no sítio, ela pegou os três canários que o meu pai mais gostava (eles viviam soltos, indo à gaiola só para se alimentarem) e colocou-os vivos no congelador, deixando-os lá a noite inteira. De manhã, ela retirou os pobrezinhos (convertidos em pedra), embrulhou-os num papel de presente e entregou ao meu pai, que quase teve um colapso. (Mas logo apareceu minha mãe, que controlou a situação e abafou o caso). É uma menina mentirosa, mas não como a maioria das crianças. Suas mentiras são caluniosas, minuciosamente arquitetadas, cheias de detalhes, e encenadas com perfeição: uma excelente atriz, não há a menor dúvida.

Desde muito pequenas, as duas primas estão quase sempre juntas. Alice faz questão que a filha frequente a casa do senador e participe da vida de Ludmila. Esta, por sua vez, já deixou claro para todos nós, várias vezes (quase sempre aos gritos, na hora do almoço, com toda a família reunida), que ela odeia a Carolina. O senador e sua esposa, incapazes de perceber a maldade que ardia por trás daqueles olhos infantis, repreendiam a menina suavemente, dizendo: “O que é isso, filhinha... Não diga uma coisa dessas. Ela é sua prima”. Ao que a filhinha respondia: “Ela não é minha prima, não pode ser. Ela é feia, magrela e burra, não sabe brincar com as coisas que eu gosto, do jeito que eu gosto. Ela não tem nenhum brinquedo legal, não sabe jogar os meus jogos, e as roupas dela são feias. Eu odeio, odeio, ODEIO essa menina”. A Carolina ouvia tudo, sem dizer nada. E seus pais, mergulhados num silêncio constrangedor, demonstravam indiferença, como se aquilo fosse algo normal. E eu, dopado com meus remédios para depressão e ansiedade, ficava lá, bebendo meu vinho, também sem dizer nada.

Mas hoje, pensando nisso, eu vejo que aquela situação me preocupava, pois no dia seguinte a uma dessas cenas, eu comecei a prestar mais atenção nas minhas sobrinhas, interessado em descobrir se o que eu supunha ser uma espécie de tortura psicológica sofrida pela Carolina tinha alguma coisa a ver com o seu estado patológico de tristeza e melancolia.

Na entrada da escola, por volta de treze horas, o motorista do senador parava o carro suavemente, bem em frente ao portão, e do banco de trás saltava Ludmila, quase sempre emburrada, seguida pela prima, que ia de carona com eles todos os dias. A bruxinha batia a porta do carro com força na cara da prima, sem esperá-la descer, como se não tivesse ninguém lá. Essa cena eu assisti por três vezes consecutivas, e conversando com o porteiro da escola, descobri que isso acontecia todos os dias.

As duas estudam na mesma sala, mas Ludmila finge que nem conhece a prima, isolando-a das outras crianças. Quem me contou isso foi uma mãe, que uma vez levantou o problema em uma reunião de pais, sem citar nomes, e foi severamente contestada pela professora.

Passei também a observá-las durante os finais de semana, no sítio, quando, por falta de opção, Ludmila aceitava brincar com a prima pobre, e ouvi algumas frases ditas quase ao pé do ouvido que me incomodaram profundamente, como: “Você parece uma porca”; “Quem faz o seu cabelo? Que coisa horrorosa!”; “Você fede”; “Eu não quero que você vá à minha festa de aniversário”; “Você é muito burra, sabia?”; “O seu pai e a sua mãe são pobres e vagabundos. Quem disse isso foi o meu pai, que é senador e ganha muito dinheiro”; “Você só tem esse vestido?”; “Eu tenho muito mais brinquedos do que você”; “Rapidinho você vai ter que ir para uma escola de crianças pobres, sujas e fedorentas, que nem você”; “Quando a gente crescer, eu vou deixar você trabalhar de empregada na minha casa, e é você que vai limpar toda a sujeira que os meus cachorros fizerem”.

Tudo isso me perturbou muito, mas como eu vivia dopado, não consegui pensar numa estratégia de ação para salvar a Carolina das garras daquele monstrinho.

Foi só naquele domingo, no sítio, depois de cinco dias sem tomar os meus remédios, que tudo explodiu.

As duas primas brincavam embaixo de um enorme pé de pequi, afastadas um pouco da casa, e eu fui até lá para investigar. Carolina estava de quatro. Seu corpo tremia, como se levasse choques elétricos, e de seus olhos escorriam lágrimas em profusão, de medo e angústia. Ludmila segurava uma vara bem fina e comprida, como um chicote, que ela passava suavemente nas pernas e nádegas da prima, gesticulando e falando alto. Cheguei mais perto, tomando o cuidado para que elas não me vissem, e ouvi Ludmila dizer: “Você não foi uma boa escrava e vai receber agora o seu castigo”.

Não aguentei. Corri até lá, arranquei a vara das mãos daquele projeto de feitor de senzala e, tomado de uma fúria incontrolável, segurei a menina pelo braço, abaixei suas calças e sapequei-lhe a bunda com cinco varadas bem dadas, marcando-a com vergões enormes que incharam na hora. Ela gritava como uma louca, com os olhos pregados em mim, aterrorizada: “Não, não, não...”; e eu gritava de volta, com os dentes serrados (minha boca espumava): “Você não pode fazer isso com a sua prima, não pode, não pode...”.

Quando eu terminei a surra, Carolina já tinha se levantado e corrido até a casa.

Imediatamente apareceu a família toda, cercada por um bando de puxa-sacos (que tinham ido bajular o senador, como de costume), dentre os quais um promotor e um capitão da polícia aposentado.

É por isso que estou aqui, nesta prisão, cumprindo o terceiro mês da minha pena por tortura e desacato à autoridade (na verdade, quebrei o nariz do promotor e cuspi na cara do capitão).

Voltei a tomar meus remédios.

E tenho lido muito Dostoievski.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 21/04/2013
Código do texto: T4252174
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