Cheiro de lembranças

Terça-feira, 8h30, em Toronto. Saí do ônibus e foi o mesmo que ser transportada no tempo de supetão. Aterrissei pelo menos uns dez anos atrás.

Nosso corpo tem dessas coisas. Um instinto apurado que capta a essência ao seu redor ainda que os outros não consigam ver ou tocar. É só uma sensação, mas é rica e intensa por dentro, e recria suas lembranças de um jeito que elas quase se tornam realidade. A experiência é tão forte que você volta a notar o sabor, o aroma ou a cor do seu passado.

O ar desta manhã me fez sentir o cheiro de férias de dezembro. Meus cinco sentidos me carregaram de volta à minha rotina de acordar cedo, pôr o protetor solar, vestir o biquíni, e sentar à mesa com meus pais e irmão para tomar café. Eu saboreando meus companheiros de quase todos os dias, leite com Nescau e pão francês com manteiga, rindo com a família, falando besteiras, e ocasionalmente pensando em problemas de adolescentes que hoje soam como piada.

Descer do ônibus em Toronto hoje me arrebatou com um ar fresco incrível. Tinha ali algo intangível e indescritível, mas ao mesmo tempo simples e óbvio para mim. Era semelhante à brisa meio salgada que só se respira nas manhãs mornas da praia, quando o sol ainda está se esforçando para acordar e quase tudo é silêncio exceto pelas ondas e a natureza interagindo.

O ar daqui, hoje, teve o som de paraíso, liberdade, aconchego, porto seguro. Uma dinâmica reforçada pelo canto de pássaros felizes com a primavera iminente, tanto quanto as gaivotas gritam e voam e mergulham no mar, empolgadas com não sei exatamente o quê.

O vento alisou meu rosto fazendo brotar um sorriso imediato de paz. Mas foi um sentimento confuso também, porque estava me inundando de saudade do que o tempo levou embora e jamais terei como recuperar por completo.

A vida flui muito rápido. Muda os cenários, os personagens, os detalhes, e torna impossível de remontar com encaixe perfeito o que se foi. Mas vem o instinto, mais forte do que o resto do meu corpo, mais definitivo que o mundo concreto.

Ainda que eu pisasse no asfalto, envolta com um casaco de fria primavera canadense. Ainda que estivesse caminhando para mais um dia de escritório. Ainda que a orla se mostrasse mais distante que o horizonte, meu contexto era outro e particular, só meu.

O ar de Toronto acordou meu instinto e bagunçou minhas percepções por alguns minutos. Mais arrebatador do que a realidade era minha lembrança de areia, calor, maresia, férias, juventude e alegria O intenso cheiro das lembranças! Eu quase, quase, revivi o passado. Quase senti o carinho das ondas. Mas aí, passou, evaporou, como um sonho que acaba. E eu estava pisando no asfalto canadense de novo, indo para o trabalho.