" PSICOPATIA AMOROSA "

                              Nunca  encarei bem a ideia de que um dia eu viesse a ser  vovô, até porque eu nunca vi meus avós ao vivo. Esta imagem, jamais me foi refletida . Quando alguém brincava comigo sobre este assunto, eu saia tangenciando imediatamente. Detestava quando via vovôs brincando com seus netinhos, deixando- os fazerem o que bem entendiam , como seus escravos fossem , falando dos tais com boca cheia , olhos brilhantes e abraçando-os como fossem um “troféu de altíssimo valor” ; eu não economizava frase de repudio.
Achava que estas “besteiras” fossem coisa de velhos caducos, já desprovidos de seus apetites sexuais, sem sonhos, aposentados preguiçosos que sem achar o que fazer, se dedicavam tão somente a ser babá de barbas e cabelos brancos, e conseqüentemente escravizados por seus filhos folgados.
Jamais sonhei sentir que um desses “ maleditos” estivessem abraçando minhas pernas com frases chorosas :--- “ vô pega eu, quero você, quero colinho!”
Também jamais passava pela minha mente que um dia eu fosse ficar algum domingo ou feriado em casa aturando choro e colocando incansavelmente chupetas em neto, enquanto os causadores reais deste “desconforto”, fossem ao cinema.
Quando minha filha começou a olhar “atravessado” para os rapazes,minha grande preocupação foi expressada em silencio:
--- Num queru nem sabê di  netu. Se um dia um dessis fii duma égua mi respondê, eu arrancu as zoreias deli! Balbuciava enfurecido.
De repente a noticia: ---Tua filha está grávida! 
Fiquei louco, queria acabar com tudo e com todos.
Depois de alguns meses ... 
---Pai, põe a tua mão aqui na minha barriga, sente como mexe!   
Mais alguns meses, minha esposa chegou em casa maravilhada, acompanhara a filha ao médico e ,na ultra-sonografia , não ficara bem claro, mas tudo indicava que era uma linda menina, e as vezes sorrindo, chupava um dos dedinhos.
Senti que meus conceitos fora atingido por uma martelada. Mais outros meses...  
---Pai, quando você conversa perto de mim , a nenê chuta minha barriga, veja só. - mostrando a barriga um pouco deformada pelos bruscos movimentos.
Quando houve o nascimento após um parto cirúrgico de altíssimo risco, eu fique num estado de perplexidade : por um lado curioso, e por outro , tentava administrar o confronto das idéias de não ser e de ser vô. Fui até ao hospital e, de mansinho ,tal qual um bom mineiro, tentava ver e não ver a “coisa” , até que tomei coragem e vi pela primeira vez a minha segunda geração. Num bercinho aquecido e à meia luz , estava lá a coisinha... , dormindo sonhando sei lá com o que, com os olhinhos vedados para lhes proteger dos raios ultravioletas, tomando banho de luz e deitadinha com o bumbunzinho para cima, parecendo uma sapinha . A enfermeira aproximando-se, pegou-a jeitosamente quase com uma mão só, tirou-lhe as vedas dos olhinhos e contornando a claridade, pude contemplar a multicoloridade dos olhos. Fiquei encantado , atônito:
---Porque muda a cor dos olhinhos ? Será que sobreviverá, não é tão miudica? Indaguei à enfermeira.. Respirei profundo, sai do hospital pisando nem sei onde. A emoção de ser vovô, esmiuçava meu preconceito.
Depois de doze dias de uti neonatal, estava em casa a sapinha, mas precisamente, a lagartixnha. Quando a vovó foi dar o primeiro banho, ai eu tive uma verdadeira aula de anatomia: vi as veias, as pelancas , o rosto miúdo, as perninhas compridas, a boca que de tão pequena, mal cabia a chupeta. As mãozinhas também eram desengonçadas, parecia ser de acrílico transparente, via até as veias dos dedinhos Ao mamar, sugava com muito esforço, apenas uns trinta mililitros de leite. Diante deste quadro ,era preciso protegê-la totalmente, (especialmente diante da ausência total de pessoas que tinham a obrigação de pelo menos saber se a lagartixinha estava viva ou morta ) ; tornei –me um gigante escudeiro. Fiscalizava tudo: o banho,a fervura da mamadeira, a abertura do bico, o leite e sua temperatura, a prevenção de possíveis assaduras,a posição ao deitar-se após as mamadas...
Meus ouvidos que antes apresentavam certa surdez, atentavam a qualquer ruído, qualquer barulhinho, qualquer choramingar... eu estava ali de olhos bem abertos. Quando ela tentava chorar eu “ chupeteava -a” , como um bom chupeteiro de plantão.
Para ir ao trabalho era difícil; varias duvidas pairavam diante de mim: será que a mãe vai cuidar direitinho dela? quem ficaria em meu lugar como fiscal executivo se eu não confiava em ninguém? Como eu trabalhava perto de casa, eu atendia um cliente, corria para casa e direto ao berço, constatava como estava a pequena e para ódio de quem cuidava da mesma , sempre eu achava defeito no trato.
Esmero? Amor? Ou psicopatia amorosa?
O leite que a lagartixinha mamava era demasiadamente caro, e difícil de encontrá-lo ,mas eu não media distancia ,horário e nem condição financeira ; percorria vários lugares até encontrar o leite indicado. Tinha que ser aquele alimento, custasse o que custasse.
A ex lagartixinha já havia tomado corpo e por sinal, que corpo, era preciso apresentá-la na igreja. Contratei uma cantora para entoar  um cântico de louvor especialmente “versãonizado” por mim ; era necessário registrar aquele sublime momento. Parecia que a pequena queria mexer com meus sentimentos e como que agradecida, não tirava os olhares de mim; onde eu ia, olhava-me como quem dizendo: Só você mesmo meu vovô, para fazer isto!
Com seis meses começou a balbuciar palavras e também parecia que desejava aconselhar-me : 
---Vá devagaaaaar, vovô !  Pise no breeeeque, o mundo é incerto, não se conhece as pessoas; tem gente com cara e corpo de gente , mas é cobra pura ,vovô, cuidado!
Já crescidinha , precisava ir para uma escolinha, até porque criança precisa de outras para brincar, (ainda mais se tiver um mãepaivô vinte e quatro horas por perto, pode até causar-lhe fadiga psiquica...) andei vários dias escolhendo a tal escolhinha; e difícil era encontrar a que eu procurava: 
Espaço, higiene, boas funcionárias...Meus olhos percorriam cada canto do lugar. Um dia fui a uma delas ,e notei que a proprietária era apressada e carrancuda; imediatamente procurei outra.
Minha esquizofrenia catatônica de amar, realmente afetava muitos interesses , afinal tem um escrito que diz: “não há quem faça o bem e não peque” Quando eu estava perdidamente e enraizado na supremacia deste amor, quando eu não sabia mais quem era eu e quem era a ex lagartixinha, quando eu respirava- a dia e noite, quando eu não conseguia dormir e viver sem a tal... usurparam- a de mim. Arrancaram-a ás brutas ,tal qual se decepa e dilacera um pé, uma mão ,sem anestesia, sem dó, sem compaixão...