AVENTURAS DE UM NEÓFITO

UM DOMINGO A-VENTUROSO

“Fiquei feliz quando me disseram, vamos à casa do Senhor” (Salmo 122)

Era um sábado à noite, quando Valentim reuniu seus filhos homens e lhes disse:

- Amanhã, domingo, iremos, somente os homens, à missa das 05:30 horas da Igreja da Glória, até o Vicente poderá ir também, afinal já tem quase 07 anos e já vai fazer a primeira comunhão. Combinado?

Os três filhos mais velhos e a filha, maiorzinha, já iam semanalmente à missa com o pai, no mesmo horário, de madrugada e sempre contavam as bravatas de tal “aventura”. Para o menorzinho seria a primeira vez e ele estava exultante. Afinal, chegara sua oportunidade de empreender a caminhada de cerca de três quilômetros, de sua casa até à Igreja, lá no alto do Morro da Glória, quando tudo estava escuro ainda. Nem dormiu direito, naquela noite, uma, porque não cabia em si da expectativa do dia amanhecer e outra, porque seu irmão, que dividia a cama com ele, no sistema de valete (um dormia virado para a cabeceira e o outro para os pés da cama, sempre cuidava de descansar os pés sobre o peito dele, o que o acordava diversas vezes durante o sono.

Afinal, acordou pela última vez ao sentir o movimento da casa, os manos se levantando e começando o ritual de se arrumar e a mãe preparando o café com broa, esta feita na véspera. O pai já estava à mesa e silenciosamente chamava os filhos para o café, sem bagunça, para não acordar as meninas.

Na sala, Walter, o primogênito, já buscava a lanterna e testava as pilhas, para conferir a luminosidade, já rodeado pelos irmãos xeretas, que insistiam em aprender como colocar as pilhas e acionar a luz. Valentim apareceu em seguida, com outra lanterna na mão, já testada e dizia que era para o Vicente levar para ajudar a iluminar o caminho, já que era a primeira vez que se levantara tão cedo para ir à missa com o pai e irmãos. Os demais concordaram e deram um peteleco na cabeça dele, para incentivá-lo.

Todos prontos, perguntava o chefe da casa para os filhos: - Todos estão levando o lenço no bolso, para forrar quando for ajoelhar? Quem não tiver, faça como eu, dobre um papel liso. Não pode ser jornal, senão suja a calça e não adiantará nada. E mostrava como dobrar o papel e metê-lo no bolso da calça.

Uma vez arrumados, calça comprida, camisa, agasalho e sapatos nos pés (ou alpargatas roda), Valentim corou sua cabeça com o chapéu marrom, Ramenzoni, de feltro e fita preta e dando a mão ao menorzinho, puxou a fila para fora da casa nº 229 da Rua “G”, da antiga Vila São Vicente de Paulo, atual Borboleta. O relógio marcava 04:45 hs e estava bem escuro naquele mês de maio de 1952.

Lanterna nervosa na mão, Walter, 13 anos, seguia à frente, bruxuleando a luz na escuridão daquela noite sem lua, seguido pelos irmãos Waltencir, 10 anos, Waldyr, 09 anos e fechando o grupo, Valentim, 46 anos e Vicente, quase 07 anos, com a segunda lanterna nas mãos . Já passaram pela casa de Dª Mariazinha, cuja cerca de bambus, que fechava seu quintal, na Rua “C”, bem defronte à Rua “G” havia enganado, certa feita, o menino Vicente, que da reta de sua casa, avistando a cerca enegrecida ao longe, pensava que ali seria o “fim do mundo”, ou seja, que aquela cerca fechava o mundo e nada existiria depois daquela cerca, no seu modo inocente e ingênuo de pensar. Agora, aliviado, passando por ela, notara que o mundo seguia além da cerca da Dª Mariazinha.

Dali para frente, poucas casas ladeavam a rua, até chegarem ao morro do João Merotto, onde ao fim da descida se encontrava a fazendinha onde ele, João Merotto morava com sua família tendo defronte, a venda do Sr. Agenor e a Escola Mista Rural São Vicente de Paulo, onde as aulas somente iam até a terceira série do primário. Tudo às escuras, quando passaram pelo local e atravessaram a ponte de madeira sobre o córrego; ao lado, a entrada, à esquerda, para a Grota dos Lawall.

O que os esperava a seguir era somente o breu, escuridão completa, que as lanternas riscavam o chão, marcando a trilha para os “peregrinos” que seguiam em fila indiana, revezando-se, ora o pai à frente, ora o primogênito, Walter, iluminando o caminho para o pequeno grupo, que seguia animado, proseando e os destemidos meninos sempre pelo meio da estrada bem estreita que mal dava para a passagem de um ou outro carro, carroça ou tilburi, obedecendo às ordens do pai: - Andar sempre pelo meio e nunca nas beiradas, porque pode ter uma cobra saindo do mato e não quero ninguém pisando numa, para levar uma picada, ouviram?

Vicente embora estreante em caminhadas noturnas, já havia passado por uma situação pavorosa, dias atrás, quando retornava do almoço, com a sacola de marmitas vazias ao ombro, lá pelas 11:30 hs.

Era muito comum naquela época, os meninos carregarem almoço para os trabalhadores nas indústrias e construções, lá na cidade, na maioria das vezes nas Fábricas Industrial Mineira e Santa Cruz, ambas fabricantes de tecidos e voltando à pé, como desceram, com as marmitas em sacolas aos ombros. Após passar a “Porteira Preta” (razão do nome: preta porque perto dela sempre haviam “despachos de macumba” e velas acesas, que com suas fumaças empreteavam a porteira), caminhando na lateral da estrada, para fugir do trânsito, o menino viu descer escorregando pelo barranco, uma grande cobra esverdeada que quase lhe caiu aos pés. Pulando de lado, deitou a correr, olhando para trás e vendo que a cobra o perseguia, correu mais e mais, com o coração a lhe sair pela boca.

Depois passaram pela “mininha”, (uma mina d’água fresquinha que brotava do barranco), pela “volta esperta” (uma curva em descida) que obrigava os caminhantes a andar mais depressa, a “porteira preta” (citada acima), lugar de onde se ouvia o ronco da cachoeira que despejava torrentes de água branca (quando chovia muito a água se coloria de marrom ou amarelada) pela encosta da mata e alimentava a turbina Antonia Bandeira, gerando energia elétrica para a fábrica e redondezas e já se vislumbrava a “ponte dos ingleses”, toda em madeira barrotes, bem pregados, mas que em determinadas ocasiões de chuvas intensas era alagada, com as águas furiosas passando por cima dela em forte correnteza, de meter medo. Em época de chuvas, a estrada se transformava em lamaçal, ou na estiagem, as pessoas, ao chegarem lá procuravam um remanso do curso d’água para lavar os pés e trocar o calçado, para se apresentarem bem limpinhas nos lugares de destino, na cidade.

Agora, o caminho, apesar da pequena subida, era mais iluminado pelas casas (atual Rua Benjamim Guimarães) que a Fábrica Industrial Mineira mandara construir para seus funcionários (até a presente data, mesmo após tantos anos e reformadas, ainda as conhecemos como as “casas novas”). Mais acima os caminhantes passavam pelo estreito formado entre o muro da Estrada de Ferro Central do Brasil e os paredões da Fábrica, com a mesma iluminação precária das lâmpadas pendentes dos postes de ferro da Cia. Mineira de Eletricidade (como tomates de vez) e deixaram para trás o “Ferro Grosso” (um grande ferro fincado no chão, protegendo a curva que a estrada fazia, perto do portão da Estrada de Ferro) e já iniciavam a subida da Av. dos Andradas, passando defronte à entrada da Fábrica, que tomava conta de grande extensão com seus altos portões.

Nessas alturas, sentindo já um cansaço nas pernas, o menino ouviu de seu pai e dos irmãos a seguinte pergunta: - E aí, Vicente, estamos andando muito depressa? Ao passo que ele respondeu: - Vocês, não, mas eu, sim! Todos riram com a pronta resposta dele e andavam cada vez mais rápido, pois que sabiam da proximidade da Igreja.

“Meu coração batia mais forte e minhas pernas tremiam, estava às portas do grande templo”

Já estávamos ao pé da grande escadaria da Igreja e ofegantes, iniciamos a subida. Lá de cima, ela, toda iluminada nos esmagava com sua grandiosidade e majestade.

Valentim mandou que se apagassem as lanternas, guardando-as na sacola e à frente dos caminhantes se dirigiu à entrada lateral esquerda da Igreja, que já estava bastante ocupada e poucos bancos restavam vagos. Procurou um banco, nas proximidades do confessionário, onde se acomodariam, ele e os filhos e se assentaram para descansar, antes do início do “Santo Sacrifício da Missa”.

O menino, com os olhos bem abertos, via e anotava tudo mentalmente: Como era grande o templo e alto também, com as formas em arcos e muito bem iluminado no centro, mas, nem tanto nas alas laterais, que estava quase na penumbra. Do lugar onde estavam, por uma fresta, dava para ver o altar e a longa mesa da comunhão, coberta por uma alva toalha bordada e tricotada com arte. Intrigado por ver três altares, sussurrou ao ouvido do pai: - “Papai, porque três altares, se a missa é celebrada somente no meio, o grande altar de Nossa Senhora da Glória?” Ao passo que o pai respondeu: - “Você não notou ainda não? Além dos três frontais, ainda temos dois altares laterais, um com a imagem de São Geraldo, lá do outro lado e outro logo ali na frente, do nosso lado, outro altar com a imagem de São Clemente, por isso escolhemos este lado, do lado de São Clemente, o santo cujo sobrenome nós levamos”

O menino estava encantado com o clima do lugar e as pessoas que já lotavam a Igreja, as mulheres com seus véus negros, as moças com os véus brancos e muitas, com suas fitas ao pescoço, ora amarelas, ora vermelhas, ora azuis, inclusive os homens, que Valentim já explicava ao perguntador Vicente, serem representativas dos diversos Movimentos Católicos, como: “Filhas de Maria”, “Liga Católica Jesus, Maria e José”, “Congregação Mariana”, etc...

As pessoas, que sabiam ler, como os irmãos de Vicente, (ele só entraria para a Escola no ano seguinte) já haviam sacado de seus bolsos os “livrinhos de missa” e rezavam contritos, ajoelhados nos lenços ou papéis que trouxeram dobrados nos bolsos e uma grande maioria, que não tinham os livrinhos ou não sabiam ler, debulhavam as contas de seus rosários e/ou terços, solenemente, baixinho e alguns até assobiando nos “ss” das Ave-Marias, enquanto no altar se sucediam as palavras, em latim, do celebrante, o pequenino Padre João Michelotto: “Dominus Vobiscum” que os coroinhas prontamente respondiam “Et cum spiritu tuo” e mais “Orate Frates”, a mais esperada era com o encerramento da missa ;’ It misse est” ...

Já se fazia um rebuliço na Igreja, com todas as pessoas se movimentando, saindo de seus bancos e se encaminhando para o altar central, se postando frente à mesa da comunhão.

Como ainda não fizera a “1ª Comunhão”, Vicente deveria permanecer no seu lugar, rezando seu tercinho, enquanto o pai e os irmãos saíam para comungar. Demorou um tempão até retornarem contritos, mãos cruzadas ao peito, ajoelhando-se e de olhos fechados permanecerem assim um tempinho.

Não demorou muito e Waldyr catucava Waltencyr e rindo, perguntava: - “Viu aquele alemão grandão, que estava do meu lado, na mesa da comunhão? Que nojo: Ele Tirou um melecão do nariz e quando enfiou as mãos por debaixo da toalha da mesa, deixou lá colado sua meleca; que falta de respeito!” Os irmãos caíram na gargalhada e Valentim já os censurava pedindo silêncio.

Com a bênção final o padre Michelotto encerrava a missa e as pessoas começaram a sair em ordem e em silêncio, permanecendo ainda o pai, com seus filhos, que se dirigiram até ao altar de São Clemente para rezarem juntos uma Ave-Maria e um Pai-Nosso, pedindo a proteção e intercessão do “Santo Parente”.

Lá fora, o dia já raiava com tímidos raios de sol que se desprendiam das nuvens, quando a família saiu e Vicente, perguntado pelo pai se havia gostado, prontamente respondeu: - Poxa, foi muito bom mesmo, desde a caminhada, que mais parecia peregrinação até a experiência de “assistir missa” na grande Igreja Mãe, de Nossa Senhora da Glória e sentir o clima de oração de tantas pessoas juntas rezando. Mas, porque lá na Vila São Vicente, onde moramos, tendo Igreja, não temos a missa aos domingos?

Agora, quem respondeu foi o irmão mais velho, o Walter, que explicou: - A Paróquia da Glória é muito grande e dá assistência à muitos lugares, como Vila Monte Castelo, São Pedro, São Roque, além de nossa Vila e eles não teem padres suficientes. Somente um domingo por mês, celebram uma missa lá, e quando fazem as “Missões” é que permanecem mais tempo conosco e as celebrações são diárias, com procissões, catecismo e rezas noturnas. Apesar da nossa Igreja de São Vicente há mais de 10 anos estar pronta e funcionando, é assim que funciona, entendeu?

O menino perguntador, ainda insistia: - Entendi, mas e essa Igreja enorme, que mais parece uma Catedral da Alemanha, quando foi feita?

Aí Valentim, descendente direto dos colonos alemães que vieram para Juiz de Fora, em 1858, explicou: - Quando os alemães aqui chegaram, não havia esta Igreja e eles logo trataram de construir uma, e pediram terras à Cia União e Indústria (que os contrataram na Alemanha) para construir um templo para eles rezarem. No terreno cedido, construíram uma pequena Igreja, com seus braços e suor de seus esforços. Essa Igreja, pegou fogo e foi destruída alguns anos depois, o que deixou os alemães e seus descendentes muito tristes. Mas foi por pouco tempo. Logo, os padres Redentoristas, mandaram fazer um projeto e o povo do lugar, principalmente os descendentes de alemães meteram mãos à obra e em pouco tempo saia do chão esta maravilha que hoje vemos, inaugurada há 28 anos e que está sempre em manutenção e reformas, para manter essa bela e pujante aparência.

Então, quer dizer que fomos nós que fizemos esta Igreja? Não somente esta, como a antiga, a Igreja de São Pedro e também a de São Vicente, onde moramos. Nós, nossos pais, avós, parentes e amigos. Afinal, somos o “Povo de Deus”, não é, arrematou o orgulhoso pai!

Valentim seguiu com Walter e Waldyr, para fazer as compras na feira-livre, como fazia semanalmente após a missa e Waltencyr e Vicente retornaram à casa, felizes e revigorados.

Juiz de Fora, 16 de dezembro de 2011.

Vicente de Paulo Clemente