OS ESTILÍNGUES DO CADÃO-LIVRO1

OS ESTILÍNGUES DO CADÃO

Lá por 1956, 57, eu e meus pais nos mudamos para o número 78 da Rua Marquês de São Vicente, em São Vicente, SP. As casas de número 70, 74 e 78 são três sobrados geminados, de fachadas iguais. No sobrado 74 habitava a família Barbosa: D. Risoleta e seu Barbosa e os filhos Gustavo, Antônio (Alemão), Ricardo ( Cadão) e Maria Adélia. Elês tinham um filho mais velho, advogado, casado, que morava em Santo André, apelido Tuia. O que eu achava pomposo era o sobrenome: Lamouche Barbosa. No número 70 morava um casal que tinha um filho chamado Osmar, mais velho que eu e meu irmão. Cadão era mais ou menos da minha idade e, aos poucos fomos nos conhecendo. E o resto da turma: Zé Guardinha e seu irmão Luis, Sandoval seus irmãos Júnior e Nash. Logo formamos um grupo de sete garotos e inventávamos as mais diversas atividades. Quando nossos pais ficavam sabendo, se desesperavam. O morro dos Barbosas era uma fonte de aventuras inesgotável. Tinha cavernas na rocha, ribanceiras de terra solta para descermos sentados em papelão, coqueiros de côco brejaúva e coquinho verde, árvores de ingá, goiabeiras, arueiras que davam excelentes forquilhas para nossos estilingues. O Cadão foi o melhor fazedor de estilíngues que conheci. Desde a escolha da forquilha e da borracha (a de câmaras de pneus de bicicletas era a melhor de todas), era um mestre. O couro tinha de ser de língua de sapato, de preferência chuteira velha. Os borracheiros e sapateiros do bairro nos conheciam de longe. Qualquer pedaço de couro que sobrava, ou parte de uma câmara de ar rasgada eram verdadeiros tesouros. Era uma constante busca de aprimorar nossa arma de caça. Os estilíngues eram tão usados, trocados, vendidos que sua fabricação era constante. Após escolha da forquilha, do couro e da borracha, a feitura do Cadão era primorosa. A habilidade manual nunca foi meu forte e eu acompanhava a execução de um estilingue com admiração e inveja. A forquilha de arueira, às vezes de goiabeira, era cortada de modo que o cabo ficasse do tamanho ideal para se empalmado pelo usuário, conforme sua mão. As pernas do “V” eram cuidadosamente aparadas, de modo a ficar do mesmo tamanho e retas, de modo a não desviar a pedra. Como todo artista, difícil era convencê-lo a fazer um estilingue. Bom, depois de preparada a forquilha, a câmara era cortada com uma tesoura afiada e essa era outra habilidade do Ricardo: não deixava nenhum dente nas tiras de borracha, que ficavam exatamente com a mesma largura em toda sua extensão. Essas tiras que impulsionariam a pedra após tensionadas e soltas pelo atirador. Deviam ter 35 a 40 cm de comprimento e 1,5 a 2 cm de largura. Em seguida, eram cortados finos cordões de borracha que eram usados para amarrar as tiras na forquilha e, na outra extremidade, no couro, que era preparado de modo a ficar um retângulo perfeito e um furo em cada lado, tudo bem simétrico. A amarração era outra arte: os cordões eram caprichosamente esticados e enrolados de modo a prender a forquilha nas tiras e essas, na outra extremidade, no couro. Como nó, era só passar o cordão por cima do dedo e prender a ponta do cordão de borracha. Pronto, estava concluído. Depois, era só enfeitar ou proteger com cordões de borracha para não machucar a mão do atirador.