Caso do jacarezinho.

Devagar eu ia aprendendo. Aprendi com a minha avó que as pessoas simplesmente são. São corretas, honestas, íntegras, leais, sensatas. Quer dizer , as pessoas podem ser isso caso queiram ou sejam criadas assim.

A minha avó era elegantíssima do ponto de vista moral. Sem exagero ela nos ensinava essa coisa extraordinária de ter vergonha na cara. Os meus pais também ensinavam com o exemplo da integridade, mas às vezes é necessário que se fale também. Criança, mesmo calada, necessita de esclarecimentos.

Com muita serenidade, a vó não reclamava da vida. Mesmo quando já não enxergava mais, não conseguindo ver o rosto do bisneto loirinho e sorridente! E como deve ser difícil não ver o vaso de violetas banhado pelo sol de primavera! Não ver o próprio prato com macarrão gravatinha com queijo ralado e o frango assado lhe fazendo parceria...

Desde sempre eu ouvia a minha avó falar que propaganda era tudo bobagem, tudo mentira. Era necessário pouco para se viver. Na sua sabedoria, ela sobreviveu, mesmo à distância, às duas guerras mundiais e conheceu dificuldades aos montes nas suas Minas Gerais. Resolveram, ela e o meu avô, se mudarem para São Paulo para que os filhos estudassem. Haveria promessa de alguma estabilidade a partir de 1945.

Quando as necessidades inventadas para o bem do capitalismo apareciam na televisão, rapidamente e com muita clareza ela dizia: "é mais uma porcaria para se ter dentro de casa".

Eu me acostumei sinceramente a duvidar das propagandas e das necessidades inventadas. E sempre tive liberdade e até prazer em viver com menos. Grife não me cativa, não me ilude. O bom mesmo é o conforto, o aspecto jovial e despojado que a gente pode ter!

E lá pelas tantas ganhei um conjuntinho branco da Lacoste de uma amiga queridíssima. Aquele conjunto de blusa e agasalho, que cai muito bem com jeans ou qualquer outra roupa. Agradeci o carinho, gostei muito da gentileza.

E eis que chega um domingo de outono. Aquele arzinho frio convidava a ficar em casa, lendo um bom livro, escrevendo, tocando “Ronda” do saudoso Paulo Vanzolini no teclado... mas uma outra amiga me convidou para um jantar comemorativo do seu aniversário.

Resolvi, então, usar a roupa nova.

Fomos a uma pizzaria interessante no belíssimo bairro de Coqueiros em Florianópolis: Pizzaria Chico Toicinho. Sempre achei instigante o nome do lugar. Deve ser uma homenagem singela ao filósofo londrino Francis Bacon, que defendia que a obtenção dos fatos verdadeiros se dava através da observação e experimentação, regulada pelo raciocínio lógico. Provavelmente, naquele espaço gastronômico, se acreditava que a observação de como se fazer uma magnífica massa levaria à experimentação da verdade absoluta através dos sentidos. Deve ser isso.

Então, uma outra amiga veio me buscar para o evento.

Mal me apresentei para entrar no carro e ela já se mostrou contente pela minha nova indumentária.

Fiquei constrangida pelo tipo de recepção. Afinal, eu sou, na minha modesta construção de uma história de vida e não sou uma grife.

Fomos ao encontro marcado.

-“Vera, como você está cheirosa, bonita com essa roupa de jacarezinho. Você está iluminada!”

-“Não, Sílvia, eu estou iluminada porque deixei de dar aula”.

-“Não! Essa roupa da Lacoste ficou perfeita demais em você... Está mesmo com um brilho só.

-” Sílvia, entenda: o meu brilho é porque deixei de fazer o melhor para ensinar e receber reclamações da coordenadora sexualmente frustrada e aquele eterno mi mi mi de alunos insatisfeitos com as suas próprias vidas...”

Mas ela não se convenceu!

Voltando para casa:

-“Bel, não precisa virar o carro para entrar na minha rua. Eu desço ali no farol e você segue reto. Fica mais fácil”.

-“Nem pensar! Com essa roupa você não pode andar sozinha, ainda mais nessa hora”.

-“Bel, ninguém vai querer nada com uma velha gorda. Ninguém vai me seqüestrar”.

-“Nem pensar! Você não está mais com cara de pobre”.

Não interessava quem eu era. O quanto trabalhei para resolver as minhas dificuldades de aprendizagem e de luta pela sobrevivência! Não importavam os meus sonhos, o tempo que corri da polícia durante a ditadura, os tempos difíceis para conseguir cursar uma universidade de renome, as noites sem dormir estudando ou corrigindo trabalhos. As dúvidas quanto à criação do meu filho e o quanto chorei nos momentos de dor.

Não interessava o quanto havia produzido intelectualmente e, feliz, recebi um cartão assinado por Carlos Drummond de Andrade me felicitando pela escrita de uns pobres poemas no início dos anos 80. Não interessava o meu inesgotável interesse em aprender, conhecer mais e melhor as coisas da natureza, das relações humanas, das artes. O meu esforço em me tornar terapeuta naturista, desenvolver habilidades com as agulhas de acupuntura, com a massoterapia chinesa. Esforço físico imenso para, anos depois, me tornar ceramista, amassar o barro, ter dores nas costas... e nas pernas... e na garganta por dar aulas de História por três longas décadas consecutivas, ter dor no braço por escrever na lousa...

Ufa! Ainda bem que um jacarezinho verde de 2 cm veio me dar alguma significância!

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 22/05/2013
Reeditado em 28/05/2013
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