MUQUIRANAS

Seu Joaquim e Dona Maria formavam um casal discreto, de temperamento calmo e arredio. Estavam na casa dos sessenta anos, mas pareciam mais velhos. Não ligavam muito para a aparência: roupas velhas e uma higiene desleixada – pele encardida de sujeira, cabelo ensebado, unhas compridas e sujas – faziam com que, muitas vezes, fossem até confundidos com mendigos na rua; mas nem se importavam. Eram pessoas muito simples.

Seu dia-a-dia era uma mesmice só: levantar cedo, fazer café, cuidar do jardim, limpar a casa, fazer comida, almoçar, arrumar a cozinha, ver televisão, cuidar da horta, comer banana, jogar paciência, jantar e dormir.

Embora fossem milionários, moravam numa casa pequena e mal conservada, não tinham carro, não viajavam, não comiam fora e só usavam roupas feitas por uma costureira bem barateira, amiga de infância de Dona Maria.

O enorme patrimônio da família era administrado por Lúcia, filha única do casal, uma quarentona feia e arrogante que, mesmo com vários pretendentes, mantinha-se solteira e virgem (não confiava em nenhum; achava que queriam só o seu dinheiro – e era verdade). Seu trabalho era receber os aluguéis das centenas de casas, apartamentos, terrenos e galpões comerciais que a família possuía, espalhados por toda a cidade. Administrava também as várias aplicações financeiras do casal, recebendo tratamento VIP nos bancos: os gerentes só faltavam lamber o chão que ela pisava, de tão bajuladores.

A vida de Lúcia era basicamente economizar o máximo possível nos gastos e aumentar cada vez mais o patrimônio da família, comprando imóveis e aplicando dinheiro. Fazia isso muito bem, graças à educação que recebera dos pais, que também eram assim, muquiranas, embora – talvez pela idade –, menos radicais.

Uma vez Dona Maria chegou a consultar uma agência de turismo com a intenção de fazer uma viagem ao litoral, pois não conhecia o mar. Ao ver o orçamento do pacote, Lúcia rasgou o papel na cara da mãe, dizendo que aquilo era um roubo, que não ia permitir que ela dilapidasse o patrimônio da família daquela forma. O pai concordou com a filha, e nem cogitou em sugerir que viajassem os três para a Europa, como ele queria, realizando assim um sonho que tinha desde a juventude: o de conhecer Roma.

Seu Joaquim suspirava na frente do espelho todas as noites, antes de dormir, resignado e triste. "Fazer crescer e proteger meu patrimônio para garantir segurança à família no futuro": este era seu lema na adolescência, e, com determinação e empenho invejáveis, transformou-o em realidade: uma fortuna imensa, acumulada em bens imóveis e MUITO dinheiro aplicado. Dinheiro suficiente para ele dar a volta ao mundo centenas de vezes se quisesse, hospedando-se nos melhores hotéis, comendo nos melhores restaurantes e assistindo a espetáculos e peças nas mais requintadas casas de shows e teatros do planeta.

Mas Seu Joaquim nunca viajou para lugar nenhum. Como a esposa, nem conhecia o mar. Nunca tinha ido a um restaurante, a um cinema, a um parque de diversões. Por quê? Ora, porque tinha que economizar. O futuro era muito incerto, a crise econômica estava sempre à espreita, o custo de vida aumentava ano a ano.

Criada nesse ambiente de implacável sovinice, Lúcia acabou se tornando a zeladora do patrimônio familiar – um verdadeiro dragão da economia –, escorraçando da casa dos pais parentes pobres que vinham pedir dinheiro emprestado, representantes de instituições de caridade, vendedores ambulantes, paroquianos pedindo auxílio para as barraquinhas da igreja, etc. Todos os gastos da casa passavam pelas suas mãos, e ela controlava tudo, nos mínimos detalhes, seguindo rigorosamente (e até aperfeiçoando) a antiga cartilha dos pais.

Quando Dona Maria adoeceu do coração, nem pensaram duas vezes: como não tinham plano de saúde, foram para a fila do SUS, onde realizaram todas as consultas e exames, suportando longas e terríveis esperas; e quando receberam a notícia de que era preciso operá-la, voltaram para a fila, para aguardar a cirurgia. Os meses foram passando, a espera se prolongando, e Dona Maria só piorando. Era preciso aguardar, pois tinha muita gente na frente. Lúcia tentou o que pôde para dar um jeitinho para a mãe, conversando com políticos da cidade, mas não teve jeito. Depois de quase dois anos de espera no SUS, Dona Maria faleceu no corredor da Santa Casa, aguardando uma vaga no CTI.

Seu Joaquim e Lúcia ficaram abalados no início, com as consciências pesadas, mas logo aceitaram a morte da mãe como algo natural, que tinha que ser. Foi Deus que quis assim.

Meses depois, Seu Joaquim também morreu. Foi Lúcia que o achou caído no quintal, ao lado de um buraco, que ele parecia estar cavando quando passou mal. Foi a primeira vez que ela viu um corpo morto não preparado para velório. No rosto do pai notou suas feições naturais; ele não parecia um boneco de cera, como os cadáveres preparados: havia muita tristeza naqueles traços.

Chorando, Lúcia ligou para a funerária. Minutos depois, ao entrar no quarto do pai, achou quatro garrafas de plástico cheias de urina, escondidas atrás da porta. Deduziu que ele vinha juntando sua própria urina para economizar a água da descarga, e que cavava uma fossa no quintal para se desfazer daquele fardo.

Na mesma hora Lúcia começou a gritar, angustiada, desesperada. Gritou e chorou até cansar. E decidiu. Aos 47 anos de idade, com o pai e a mãe mortos, resolveu mudar de vida: gastaria metade da sua fortuna em diversão, boa comida e viagens pelo mundo. Começaria encontrando um homem que a desvirginasse e lhe fizesse companhia no dia-a-dia, mesmo sem amá-la.

Conheceu Rodrigo, um servente de pedreiro, jovem (tinha 32 anos), limpo e bem-apessoado. Não era inteligente, mas Lúcia não queria dois cérebros funcionando naquela relação, só o dela; que ele cuidasse de tirar as teias de aranha de onde tinha que tirar e lhe fizesse companhia quando ela solicitasse e já estaria satisfeita.

Depois de três meses de namoro, casaram-se e deram uma grande festa, com direito a vinhos e uísques importados, iguarias das mais sofisticadas e três bandas sertanejas tocando a noite inteira. Rodrigo estava nas nuvens. Do nada, encheu-se de amigos; todos queriam puxar seu saco, por causa do casamento milionário.

Um mês depois do casamento, quando saía de uma agência de turismo cheia de prospectos de viagens para analisar com o marido, Lúcia teve um infarto fulminante e morreu na calçada, a caminho de casa.

Rodrigo recebeu toda a fortuna dos muquiranas, avaliada em mais de 300 milhões de reais. Hoje, bilionário, tem 48 anos; fez um curso de Administração à distância, viajou o mundo todo, comprou dez motos Harley-Davidson, engordou vinte quilos e está muito feliz.

Rodrigo é um herói brasileiro.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 24/05/2013
Código do texto: T4307065
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