Jardineiro da Babilônia

Estou no quarto do imóvel. Imóvel com veleidades para casa. De janela fechada. Trancafiada. Não faço parto, não sou parteira. Sou espada! Que fique claro, o quarto na verdade é uma suíte. Estou parindo sim a raiva, o desconforto pelo descanso interrompido.

Reclamo a quem pelo barulho no ouvido vindo de tudo que me cerca?

Não deixo a porta aberta, que é para abafar o som. Cerro as cortinas para o ruído da luz não entrar. Queria silêncio, mas hoje, não vai dar.

A rua é agitada e o dormitório lambe a bochecha das calçadas.

Não há período de melhora, o estampido estoura a toda hora. Seja num mínimo tilintar de chaves ou no gralhar das aves, voadoras de ocasião. Veio a voz esganiçada da vizinha dizer o nome dos doze filhos bem debaixo da minha janela.

Acreditem. O cachorro dela subia não sei como no telhado aqui.

Sapateava e latia durante as madrugadas. Acho que ele tinha dotes de solista. Às vezes, um canino lá de longe respondia, emprestava a segunda voz... Quando não, um terceiro. Quarto, quinto. E o quarto, a noite em si, virava o quinto dos infernos.

Então...

O sono perde o luxo.

Puxo travesseiro para cobrir a cabeça, não há quem mereça, nem eu! Ao menos, sou um tanto precavido. Tenho os sagrados protetores de ouvido que me servem para o abuso sonoro diminuir.

Enfim,

o sono acha o luxo.

Dá-se um tempo que aquilo incomoda. O objeto de borracha que preenche o pavilhão auricular faz doer o canal. Acordo para me virar na cama e testar o nível externo de perturbação. Legal! Já posso remover o aparato! Mas tudo é questão de tempo, basta o dia começar para todo um roncar de motores.

Tem de toda afinação. Ônibus, caminhão, moto e carro. Nunca tinha pensado nisso, em catalogar as espécies de zumbido vinda dos carros.

Tem veículo tocador de funk aos montes pela vizinhança, com toda aquela pujança sonora. Obesidade indesejada claro. Berra à beça e também, o carro da pamonha na mesma lenga-lenga de sempre.

— Olha aí freguesia,

vai passando em sua rua...

Eu olhar? Vou olhar nada. Dou-lhe uma pedrada nos vidros para calar a matraca. É assim que é! De outro autofalante mais distante daqui, vem o anúncio da cândida. Água sanitária ou alvejante para muitos. Tem amaciante e detergente. Opa, estava mesmo precisando. Roupa cheirosa e louça lavada requerem os tais produtos.

O carro azarado é aquele que passa se arrastando, cantando um som repetido.

— Flop, flop, flop, flop.

O pneu furado é um infortúnio, sinto muito.

Palmas. E mais palmas. Estão aplaudindo os portões da minha residência. Pensei eu comigo: mas que tamanha insistência, gente doida, gente que aplaude portão justo numa manhã fria de domingo.

Bingo!

Valha-me Oxalá, Jesus, Jeová! Eram elas, as testemunhas! Usei as unhas para coçar a cabeça. E agora? Dei o truque, fingi de morto. Deu certo. As palmas elegeram outro portão. De coração, não posso, hoje não.

Bem, devo preparar o café, trocar de roupas e me ocupar, arrumar a cama e abrir a janela. O que me espera é a Babilônia e a quimera do reino diante dela. Como bom babilônio que sou, vou ali atender ao chamado do imperador de grande nome.

Nabucodonosor.

Serviço de jardinagem nos Jardins Suspensos, bairro chique né? O paisagismo é importante para essa gente importante. E Nabuco, ao que dizem, remunera bem. Vou aproveitar e me liberar dos traumas do quarto. Arejar!

As plantas e as flores são mudas, são quietas. Adornos em oração. E isso me refrigera o organismo. A beleza calma que suspende aquele jardim, o torna um refúgio. Não devo me furtar. Devo aceitar com respeito esse ofício.

Felix Ventura
Enviado por Felix Ventura em 25/05/2013
Reeditado em 16/07/2021
Código do texto: T4308417
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