Quando o chinês comeu o meu cão

Quando o chinês comeu o meu cão no Bairro Benfica.

Temos ouvido, nestes últimos tempos, tantas coisas, tantos comentários contra a xenofobia. Uns contra a segregação, outros a favor do diálogo, da interacção das culturas, dos povos e da boa-vontade mundial, que tenho dúvidas sobre o que quero relatar agora.

Nada de especial, longe de ser uma perseguição racista, social ou política, mas um incidente isolado que pode dar mote para debate sobre quem é quem neste mundo.

Dei comigo a pensar quem é o “alho” e quem é o “bugalho”.

Passou-se um incidente pelos lados de Benfica.

Uma família angolana, verificando que tinha necessidade e capacidade financeira para fazer umas obras lá em casa, entendeu contratar “uns chineses” para mudar algumas coisas no quintal, fazer obras na casa de banho dos anexos e, porque não confessar, um depósito de água subterrâneo de 3.000 litros que isto da água dá trabalho pelas nossas bandas. De Cabinda ao Cunene, do mar ao Leste. Um só povo, uma só realidade de fornecimento de água... Outras conversas.

Lá vieram os chineses e começou o diálogo:

-Bom dia – disse o nosso interveniente principal cuja identidade vai ser mantida secreta.

-Bom dia, amigó! - disse o chinês, que vai ser o nosso interlocutor devido à profunda falta de habilidade lusófona dos outros... 15 chineses.

-Camarada, aqui não é para inventar nada. Azulejos e torneiras novas na casa de banho do anexo e um depósito de 3.000 litros de água muito bem feito que eu não quero chatices!

-Sim, amigó! Torneirá e depósitó! - disse o chinês.

-Quantos dias para fazer isso?

-Dias térés!

-Oi?

O chinês viu-se obrigado a mostrar 3 dos seus dedos da mão direita.

-Ok. Quando começa?

-Começá hoji!

-Hoje é sexta-feira, pá. Chatice. Bem, está bem.

-Você sai. Chinês fica, dias térés.

-Mau, não posso ficar em minha casa?

-Não, água fecha. Luz fecha. Nada. Amigó sai!

O nosso camarada olhou para o chinês. Lembrou-se que eles só teriam acesso aos anexos e quintal. O preço que o chinês pediu era bem mais interessante do que ele estava a contar.

-Ok. Eu sai. Chinês fica. Três dias – mostrando três dos seus dedos da mão carnuda e enfeitada com uma bela pulseira de ouro.

Lá foi a família honrar os familiares com a visita demorada sempre adiada.

Três dias, três simples dias.

No domingo à tarde a família reuniu-se, agradeceu, despediu-se e rumou a casa para verem a obra, o resultado. Principalmente para prepararem tudo para segunda-feira, dia de escola dos putos e de trabalho dos adultos.

Mas sair de uma casa angolana sem a saídeira, sem o abraço, sem o repeteco de cerveja, não seria uma despedida conveniente.

Eram 17.50 horas de domingo quando esta família chegou a casa, lá para os lados do Benfica.

-Amigo chegó! - disse o chinês orgulhoso da obra concluída.

-Cheguei, cheguei... Vá, mostra lá o que fizeste – disse, sem grande entusiasmo e a língua a desobedecer um pouco.

A família foi andando, rodando e verificando tudo, principalmente o depósito de água.

De repente ouviu-se um grito. Um grito assustador e sofrido, do fundo do coração de uma criança:

-Ó pai, o nosso cão fugiu!!!

Toda a gente a olhar uns para os outros a modos de perceber o que se passava.

-O cão desapareceu? Como assim?

-Não está na casota, pai! O nosso cão desapareceu!

-Mas nós temos cão? - pergunta o pai, olhando para a mãe.

-Pai, o Bobby. O nosso Bobby!

O pai olha para a mãe. A mãe olha para o pai e franze o sobrolho na direcção do chinês. A porta da casota escancarada a olhar para os dois.

-Ó camarada, onde é que está o meu cão? Estás a ouvir, camarada? O meu cão?

-Nao, cao. Cao acabou! - disse o chinês a sorrir.

-Acabou? O meu cão acabou? Mau, onde é que está o meu cão? - o nosso herói começa a elevar a voz.

-Cao não está mais. Nao cao! Cao foi! - disse o chinês sempre a sorrir, mas a perceber que era caso de se começar a preocupar.

O miúdo grita ainda mais alto:

-Pai, eles comeram o meu cão! Eles Comeram o Bobby!

-Marido, faz alguma coisa que eles ainda nos comem a nós todos! - grita a esposa em pânico.

O pai começa a rodar pelo quintal. A porta da casota escancarada continuava a olhar para ele!

-Daqui ninguém sai sem me apresentarem o raio do cão!

-Marido, será que eles comeram mesmo o Bobby? - disse a mulher, ofegante, a agarrar a cabeça do filho mais novo no peito.

-Aqui ninguém come cão nenhum, nem chinês, nem vietnamita, ninguém!

-Amor, vai buscar a pistola. Olha que eles são muitos e ainda te dão um golpe de karaté, como o Bruce Lee, o primo do Jackie Chan! Socorro que nos matam!!!

-A mim? A mim? Ó chinês duma figa, está a ameaçar-me?

O chinês percebe que algo está mal e começa a gritar, a chamar os outros chineses, todos assustados, com as mãos na cabeça, numa correria sem nexo.

Os muros do quintal pareciam as muralhas da fortaleza, a Muralha da China.

A esposa corre e segura um chinês pelo pescoço e pede ajuda:

-Acudam que ele me mata!! - num grito aflito, mas quase esganando o pobre do chinês que não conseguia fugir daquele grampo fatal de braço de funge de bombó.

-Socorro que ele me mata à frente dos meus filhos!!! Socorro, marido! - gritava, poderosa, já sentada em cima do primeiro chinês e a escalfar o segundo por uma orelha.

Era tanta a confusão que a vizinhança acudiu e cada um berrava mais que o outro, cada um dava mais um cascudo nos chinocas, fora os bicos, mordidelas e arranhões.

Todos menos um, o vizinho do lado, atrasado como sempre, chega caminhando firme com um cão pela coleira.

-Parem todos, senão largo o cão – bradou, controlando o cão que latia feroz na direcção de todos.

Naquele grito alguém pára e pergunta:

-Ó vizinho, você tem cão?

-Não, este é o Bobby. Estava com sede e os chineses levaram-no para eu lhe dar água e comida que a eles o cão só ladrava e a mim conhece-me bem...

Toda a gente pára.

O cão solta-se da coleira e corre divertido para o filho mais novo. Os dois, cão e criança, dois amigos da primeira hora, abraçaram-se, beijaram-se, lamberam-se e rolaram pela relva num reencontro perfeito, dividindo saliva e suor.

Um milagre. Um verdadeiro milagre...

No final, somente 6 dos chineses estavam no quintal.

Os outros fugiram.

Estes 6 desconseguiram. Cansados, batidos, moídos de chapada à queima roupa.

Foi difícil para o nosso herói, o nosso pai, encontrar as palavras certas para se desculpar ao chinês, melhor, a todos eles... Desculpar-se por si e pela sua família, tal como por alguns dos vizinhos, que outros ficaram só a ver. Não foi só pela falta de vocabulário mandarim, pela lacuna verborreíca das línguas dessas paragens, mas foi principalmente pela inquietação e despeito do chinês.

A obra foi feita e entregue, isto ninguém pode negar. Casa de banho e depósito. Torneiras e tudo.

O cão, o Bobby, está em vida nos braços do seu pueril companheiro.

O que sobrou para o nosso competente chinês?

Perseguição e agressão... Infâmia.

Bem, deveria estar a pensar o chinês, que “na vida só as paredes não se encontram” e, na primeira oportunidade, na primeira ocasião que apanhar aquele angolano, outro angolano, aquela família angolana, outra família que fosse, mas angolana, assim que os apanhasse, com ou sem cão, que lhes pusesse a mão em cima, mas desta vez do outro lado da Muralha, da muralha dele, então eles íam ver o que é um grampo de Kung Fu e o quanto a arte da capoeira é só vento – pensou, certamente, digo eu...

Por muito que tentassem, não conseguiram explicar o quanto lamentaram este incidente. Um incidente simples, muito mais canino do que xenófobo.

Termina aqui este relato, um tanto emocionado, é certo, na expectativa de vos dar alguma luz sobre o que se passa nas relações dos povos, não nos palcos internacionais com visibilidade mediática, mas já ali, mesmo ao lado de casa, para os lados do Benfica, por exemplo.