O Virtual que Arde

E lá vamos nós num passeio virtual pelo mundo das hipocrisias reais. São enlaces e desenlaces sempre permeados pelo incógnito ridículo do travestir-se nos desejos insólitos abrindo mãos e mentes da realidade nua e cruel. Mesmo porque a realidade nua e cruel não é para todos, como são as atitudes virtuais. De salas virtuais de bate papos, até o frio devastador de uma noite sob a marquise de uma rua qualquer, homens, mulheres e crianças são as personagens de uma saga vergonhosa que por vezes envolve e ilude libidos e egos, porém, noutras atinge com uma bala certeira famílias inteiras.

(12:25:08) Gato Lindo entra na sala :

(12:32:15) Loura Sarada fala para Gato Lindo: oi...

(12:42:08) Amor Próprio sai da sala:

(12:42:08) Respeito entra na sala:

(12:43:11) Gato Lindo sussurra para Loura Sarada: Tc de onde?

(12:43:43) Criança Fora da Escola entra na sala: alguém quer tc?

(12:43:43) Respeito sai da sala:

(12:43:43) Autoridades acompanham:

(12:44:08) Loura Sarada fala para Gato Lindo: Ipanema. Como vc é? Tenho 1,65 Mts, 55 kg, sou morena, cabelos negros escorridos e olhos verdes.

(12:45:08) Gato Lindo sussurra para Loura Sarada: Moreno claro, olhos castanhos claros, corpo de jogador de futebol...

Lá de dentro da cozinha ouve-se uma voz estridente:

- Gevásio! Vem comer diabo! As criança tá cum fome!!!

A voz é de Genilda, mulher de Gato Lindo, digo, Gevásio. Já passavam das dez da noite e a janta acabara de sair. A mulher não possuía paciência suficiente para esperar por seu companheiro. Não entendia o que fazia aquele sessentão, gordo, desdentado, que ainda cheirava ao peixe do trabalho, ali, fuxicando o computador que o filho ganhara num sorteio.

- Já vou! Sua ignorante...

O “Já vou!” do peixeiro rasgou a sala, seguido de um resmungo mais comedido. Gato Lindo escaldado tem medo de água fria, e de frigideira também.

(12:25:08) Loura Sarada fala para Gato Lindo: ????????

- Mãeeeee!!!!!!!

O grito veio do quarto. Foi Severino Jorge, um menino de nove anos, que não suportava mais a fome que o assolava. A mãe de Severino? Jaciara. Também conhecida nas horas “vagas” como Loura Sarada. Uma senhora aparentando umas cinqüenta e cinco primaveras, mais ou menos, que ainda deixava pingar rosto abaixo uma mistura de suor e gordura de fazer correr até os tarados menos exigentes. Uma loucura! Jaciara perdeu a compostura e, entre uma “merda” pra lá e um “puta-que-o-pariu” pra cá, desligou seu computador e saiu para esbravejar aos ouvidos de seu pupilo:

- Severino Jorge, seu “disgranado”! Não tá vendo que eu tô ocupada miserável. Sua comida já tá na mesa faz mais de meia hora. Vê se larga esse troço de “vidogâme”!! Anda, vai jantar, coisa ruim!

Pois é, o rápido “affair” entre Gato Lindo e Loura Sarada desfez-se mesmo antes de começar. Porém, ambos foram dormir achando que de alguma forma encantaram o príncipe e a princesa que um enxergara no outro. Este é o passeio virtual inocente, que ilude, mas não mata – às vezes mata sim, mas isso é uma outra história. Existe uma outra desilusão que se dá com conseqüências muito mais graves. Esta não se realiza na sala virtual, mas na rua, no trabalho, em casa, enfim, no conviver real, repleto de sonhos, ilusões e desejos.

- Boa tarde minha Senhora! Como a senhora se chama?

- Eulália, o que o Senhor tá querendo?

- Bem, meu nome é Alcindo Prometeus. Sou do PECM – Partido dos Engajados na Causa Matre, a Senhora conhece?

- Não.

- Pois é, nós estamos com uma campanha toda galgada...

- Gal o quê?

- Galgada e projetada para uma melhoria considerável aqui em seu bairro. Vamos calçar ruas, limpar os bueiros, arranjar emprego para todos e colocar essas crianças lindas na escola. Como é mesmo o nome desse seu filhinho?

- Né filhinho não senhor, é neto. Filho daquela ali. – Disse a mulher de no máximo trinta anos, apontando para sua filha de no máximo quinze.

- Hum... Alguém deveria limpar o nariz dele, está escorrendo uma coisa... argh! Bem, mas vamos ao que interessa. Nós precisamos do seu auxílio e... Bem como a Senhora poderia nos auxiliar? Ora, votando neste que vos fala e, que vos ajudará a melhorar de vida.

- Sei não... Como é o nome do senhor mesmo? Olha, porque o senhor não faz um churrasquinho aqui no Sábado, aí nós conversa. Prometo arranjar um monte de gente pra votar no Senhor, mas tem de fazer um churrasco porreta!

- Alcindo Prometeus, este é o meu nome.

Esse entrelace, também virtual – uma vez que é apenas de brincadeirinha, pois o político não cumprirá suas promessas e, Dona Eulália provavelmente votará num outro fazedor de promessas -, segue as mesmas normas daquele que ocorreu na telinha do computador. Duas pessoas prometendo, duas pessoas iludindo e, duas pessoas se desiludindo. Todavia, aqui o resultado da desilusão é mais grave.

Todos nós gostamos de apreciar crianças brincando nas ruas, mas não gostamos de ver crianças brincando na rua no horário em que estas deveriam estar diante de um quadro negro. A responsabilidade do político que transforma em produto virtual suas promessas de campanha possui uma gravidade estarrecedora. Pessoas morrem! Logo depois de largar o leite materno, as crianças ganham caixas de chicletes e balas e vão à luta por seus almoços e seus jantares. Assim que ganham condição de carregar algo acima dos cinco quilos, são recrutados pelo tráfico que os obriga ao confronto com a lei da repressão policial e, ao confronto com bandidos de facções rivais. Quando chegam a idade adulta... Isso é o mais grave de tudo. Quase nenhum deles chega a idade adulta.

Seus pais os ignoram. Seu país os ignora. Seus pais os reproduzem aos milhares. Seu país os mata aos milhares.

Deixar que a internet siga fornecendo e destruindo sonhos não nos interessa, e uma mudança ou solução para suas relações não nos importa. Porém, incrementar protestos e uma luta mais acirrada pela melhoria na educação infantil... Isso salvará nossas vidas. Precisamos trancar nossas crianças na escola, para podermos abrir as jaulas nas quais nos enfiamos para fugir da violência assustadora que assola todo o país. Urge a necessidade de que a sociedade se dê conta de sua importância e de seus deveres. Não adianta ficarmos cobrando das autoridades atitudes que irão beneficiar a sociedade como um todo. É esta sociedade, em seu todo, que deve fazer algo para que esta situação se reverta e nos permita viver um pouco mais, a nós e nossas crianças. Deixemos o mundo virtual nas salas de bate papos, as ruas são reais e cruéis demais.

(16:50:00) Crianças Carentes entram na sala:

(16:50:00) A Sociedade Brasileira também: