Tempestades

Vou até minha estante e pego o livro 'Big Sur', de Jack Kerouac. Abro-o numa página qualquer e leio ao acaso: “E com todas as escuridões róseas enevoadas de tons variados e sombras tranquilas para expressar a efemeridade real da noite”. Vou ao início e leio: “A infância da simplicidade de apenas ser feliz num bosque, sem se dobrar às ideias de ninguém sobre o que fazer, o que deve ser feito”. Depois: “Vamos passar tão quietos pela vida (passando, passando) como o povo do século X aqui nesse vale só que com um pouco mais de barulho e algumas pontes e barragens e bombas que sequer vão durar um milhão de anos”. Fecho o livro e admiro sua capa: um carro seguindo por uma estrada deserta, e, logo acima do título, a frase de Allen Ginsberg: “Cada livro de Jack Kerouac é uma peça única, um diamante telepático”.

'Big Sur'. Que beleza de livro. Folheio-o novamente, acaricio sua lombada, viro-o de um lado para o outro e deixo-o sobre uma cadeira, bem ao lado de uma taça de vinho pela metade: um tinto português do Vale do Douro que eu abri ontem à noite e que, agora, neste início de tarde, eu continuo a beber, pensando: “As uvas daquela região tiveram que dar sua alma para que esta maravilha pudesse ser produzida; e o mesmo eu digo do Jack, que pôs toda a sua alma indomável neste livro extraordinário”. Olho para o livro e para o vinho e me emociono, mais ou menos como me emocionei quando segurei pela primeira vez uma edição antiga de 'O Caso Morel', de Rubem Fonseca, e senti suas páginas amarelecidas pelo tempo, pressentindo o prazer da leitura que em breve eu faria; ou quando eu me encontrava nas páginas finais de 'Trem noturno para Lisboa', de Pascal Mercier, e não queria terminar, e segurava o livro junto ao peito numa espécie de abraço de despedida.

Trago para junto de mim agora uma bela edição de 'Crime e Castigo', de Dostoievski. Vou à página 577 e releio a última frase do livro, seca, dura, fria: “Poderíamos encontrar aqui matéria para um novo relato, mas o nosso já terminou”. Lembro-me que, quando li o livro pela primeira vez, o tom de indiferença e cansaço que o autor adotou aqui me atingiu como um corte de navalha, porque meu espírito ainda era um turbilhão de loucura e desespero – é isso que Dostoievski faz com a gente! – e não queria se acalmar, não estava satisfeito; queria mais. É como se de um enorme tornado, de repente, sem nenhum aviso, você é lançado para fora e vai ao chão, Bum!, sente o impacto – forte, violento –, levanta-se, limpa a poeira do corpo, olha ao redor e só vê um deserto – um imenso e mudo deserto –, e num piscar de olhos está de volta à realidade, à vida cotidiana, às obrigações do dia-a-dia. Mas por dentro você é outro. Aquilo te transformou.

Ouço um trovão. Estou sozinho em casa. Termino meu vinho, pego 'Uivo', de Allen Ginsberg, e vou para o quintal sentir as tempestades que se armam – fora e dentro de mim. De seu túmulo, Ginsberg vocifera: “Soltem as fechaduras das portas! Soltem também as portas dos seus batentes!”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 31/05/2013
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