O Cara que não Mudou o Mundo

Certo dia um sujeito resolveu que mudaria o mundo. Não mudou a calça nem a camisa, não trocou a cueca nem a meia. Continuou com a mesma botina velha mostrando o dedo menor através de um buraco. Ele não conheceu Antonio Conselheiro nem a história do beato, não tinha noção das atividades resistentes da Balaiada, tampouco se inteirava da luta camponesa no Araguaia contra os monstros fardados da Ditadura Militar. Saiu andando como se tivesse adquirido supra-poder, pisava alto, criticava o que via. A placa de pare devia seguir, o semáforo poderia ter cores diferentes, as ruas deviam terminar sem saída, para que a volta fosse para o mesmo lugar , esta era a sua vontade. Muitos passos a frente um barulho ensurdecedor de carros de salvamento, convergiam para as ruas que deixavam de respeitar a placa, o significado da palavra pare passou a siga. E todos queriam seguir ao mesmo tempo, os apressados de sempre se deliciaram com a nova invenção, fruto dos pensamentos do cara que resolveu mudar o mundo. Os choques foram inevitáveis, o sangue escorria feito enxurrada pós tempestade, mas ninguém parava a ânsia de chegar a algum lugar, que os levavam todos a lugar nenhum. Sem se importar com o caos da placa pare, o sujeito causou ainda uma onda de autômatos que não sabiam mais onde queriam chegar, andavam, andavam até chegarem ao final da rua, lá descobriam que não era o local que precisavam chegar, então voltavam e andavam novamente até o final da rua, até descobrirem que precisavam voltar porque a imensa parede era o limite. O cara seguia com sua botina em passos curtos e absorto na sua recriação do estado das coisas. Para o semáforo pensou o azul em substituição ao vermelho e misturou o vermelho com o amarelo, fazendo um laranja para mudar o verde e tirou o verde para colocar o branco. Como ninguém parava na placa pare que agora era siga, o semáforo ainda coibia a ligeireza excessiva. Agora nada mais segurava os carros, as motos, as bicicletas que pareciam seres de vida própria. Corriam como se ganhassem prêmios quem chegasse primeiro, até o ônibus que transportava os funcionários se esquecera deste detalhe e atravessou a avenida, o carro que vinha sob o sinal laranja bateu com tanta força que um dos passageiros caiu no caminhão de melancia que havia batido no carro de bombeiros. O sujeito ainda caminhava com seu semblante vago e com seus passos curtos, pensou que as filas deveriam se acabar. Pensou que ao nascer, somos enfileirados por números que dizem quem nasceu antes e quem depois. Entramos na fila para cadastros, para receber documentos, até para a diversão entramos na fila e para não perder o costume na hora do enterro somos cortejados por carros tendo a frente o féretro para o ultimo passeio. Instantaneamente as filas foram desaparecendo, no banco uma aglomeração descomunal de pessoas arrebentaram as portas, falaram ao mesmo tempo e surtaram a atendente. No banheiro público foi uma defecação coletiva nas pernas, já que ninguém conseguira entrar devido ao volume disforme dos usuários. No hospital morreram os pacientes graves que não se entenderam na entrada. Nas ruas sem placas pare e sem semáforos de cores indicativas já morriam pessoas a todo instante, ao eliminar a fila carros se espremiam, giravam nas pistas e causavam mais acidentes. Até que a mãe do sujeito que enlouqueceu a vida, saiu da fila de pedestres que andavam no passeio e fora atropelada pelo carro da policia que tentava passar voando pelo caos. Por não ter o verde no semáforo a equipe de salvamento não prosseguiu com receio de acidente. Foi então que sua mãe morreu e não pôde ser enterrada, já que todos querendo ao mesmo tempo o cemitério lotou e congestionou as entradas. O homem então com a mesma roupa, a mesma cara e uma decepção imensurável. Jogou-se da janela da torre da Igreja, mas não morreu ao cair, muitos corpos já haviam formando um colchão de cadáveres e o cara levantou em desespero, mentalizou a volta do mundo com um vermelho vibrante como aquele do semáforo, escorrendo diante dos seus olhos.