Meu cerco na Lapa

A Lapa é uma cidade a 69 quilômetros de Curitiba. É uma distância segura. Uma das vantagens em se visitar a cidade é a possibilidade de passar quase despercebido. Os turistas estão para a Lapa assim como os pombos estão para Curitiba: tomando conta das principais praças da cidade, todos os dias da semana, sempre em grupos animados, em número cada vez maior, ficando cada vez mais ousados, e fazendo parte de uma rotina que não merece mais muita atenção.

O curitibano do século XXI sente-se chocado com algumas das noções de planejamento urbano existentes na Lapa. Não consegue conceber a idéia de que existam ruas de calçamento em pleno centro da cidade. É como se o centro de Curitiba fosse engolido pelo Largo da Ordem. Todos os 14 quarteirões do Centro Histórico da Lapa não possuem asfalto. E nem sinaleiros. Em tempos de eleição, essa é uma característica amplamente favorável. Os homens urbanos certamente veriam com indignação a calçada da Rua Francisco Braga – sem dúvida a mais estreita de toda a Região Metropolitana de Curitiba. Mal cabe uma pessoa em cima dela, e essa pessoa geralmente encontra uma outra, vindo na direção oposta. Gosto de pensar que, na verdade, essa é uma eficaz estratégia do governo municipal, com o admirável objetivo de conceder ao cidadão comum a chance de praticar um ato de bondade, descendo da calçada e permitindo que um outro cidadão passe com mais tranqüilidade.

A cidade conta com pouco mais de 40 mil habitantes. E assim como a capital paranaense, a Lapa também possui uma rua chamada XV de Novembro. Mas ao contrário da concorrida homônima de Curitiba, a rua lapeana possui tanto movimento quanto as outras ruas vizinhas: muito pouco. Há outra diferença fundamental que separa Curitiba da Lapa. Na Rua XV de Novembro da capital, os cidadãos curitibanos erigiram um imponente templo ao consumo e à modernidade. Na Rua XV de Novembro da Lapa, os cidadãos lapeanos ergueram um estranho prédio para preservar a memória de seus heróis. No “Pantheon dos Heroes” descansam em paz muitos dos cidadãos da Lapa, e provavelmente muitos outros que apenas morreram na cidade. Eis, portanto, a diferença: os lapeanos erguem templos ao passado, e nós a um futuro incerto, e provavelmente prejudicial.

Esses heróis da cidade morreram durante o Cerco da Lapa, na Revolução Federalista, em 1894. As tropas legalistas, em menor número, conseguiram impedir que os maragatos vindos do sul avançassem e chegassem com a revolução na capital do Brasil. E o líder das forças legalistas era o General Carneiro, esse mesmo senhor sob os pés de quem estou sentado nesse momento. É a praça que leva o seu nome, e a estátua em bronze também é a sua. Sei que se trata de um militar, um ex-combatente da Guerra do Paraguai, mas esqueço nossas diferenças e começo a puxar assunto. Penso em dizer que ele possui a grande vantagem de não ser estátua em Curitiba, onde atrairia apenas pombos. Assim como eu, o General Carneiro não nasceu na Lapa. Mas hoje, é ali que seu nome soa melhor. Não acredito que suas cinzas estejam realmente no Pantheon. O General Carneiro sequer morreu. O número de homenagens que recebe, o seu olhar imponente, o seu rosto convicto, a sua aura de valentia, a freqüência com que seu nome é pronunciado, a importância que representa para a economia da cidade, tudo isso é prova suficiente de que o General Carneiro continua bem vivo no pensamento de uma cidade que, por algum motivo que não conseguimos entender direito, se recusa a esquecer tudo que se refira ao seu passado.

Ao me despedir do General, encontro o embaixador Hipólito Alves de Araújo, que desde 1957 é um bonito busto na mesma praça. Pareceu-me um bom sujeito, que libertou seus escravos oito anos antes da Lei Áurea. Ele olha fixamente para o Hospital que criou, do outro lado da rua. O prédio informa o ano da construção, que foi o de 1924. Ontem, praticamente.

Ainda mais se repararmos na Igreja de Santo Antônio, que fica na própria praça, e cuja porta informa uma data ocorrida há praticamente dois milênios: 1784. Sua arquitetura é em estilo colonial português simples. Dentro, há imagens do século XIX, trazidas da Europa. Mas tivemos o azar de estar lá em plena segunda-feira. Nesse dia, a Igreja fica fechada. Tudo que podemos fazer é ficar no espaço entre a porta central e a porta que dá acesso ao interior da Igreja. Pelo vidro, conseguimos enxergar o que existe lá dentro. Ao meu lado, um senhor e duas senhoras estão em profunda concentração, com semblantes contritos. Não é a segunda-feira e tampouco uma porta que vai impedir que eles orem. Em silêncio, observo aquela admirável manifestação de fé lapeana.

Dizem que são 258 as edificações do Centro Histórico, das quais 38 datam do século X IX. A definição “Centro Histórico” não é de meu agrado. Sugere a existência de um outro centro, um centro que temo conhecer e me decepcionar. E, na verdade, tenho sérias dúvidas sobre a necessidade de um outro centro. Por ali, temos uma Igreja, uma praça, uma escola, um mercado, um hospital, uma farmácia, um terminal de ônibus e 24,41 hectares de passado e história, disponíveis de forma democrática a todos, incluindo aqueles que, como eu, não moram na cidade.

Caminhando pelos quarteirões, encontro a casa onde o governador Ney Amynthas de Barros Braga resolveu vir ao mundo. Muitos governadores do Paraná ainda irão nascer, mas tenho certeza que dificilmente um deles terá o seu nome estampado com tanto orgulho na casa onde nasceu. Existe ainda a Casa Lacerda, sede do Quartel General durante o Cerco da Lapa. Também existe a casa onde – dizem – morreu o sempre vivo General Carneiro. Há a simpática prefeitura, ao contrário do que estamos acostumados. A Casa dos Cavalinhos, onde um homem sonhou com cavalos alados e ganhou o prêmio máximo na loteria imperial. Hoje, essa casa guarda o acervo da memória lapeana que não está no inconsciente coletivo. E uma quantidade considerável de casas com placas na entrada, explicando a razão pela qual nós, estranhos seres contemporâneos, devemos reverenciá-las por toda a eternidade.

Passo novamente pelo Antigo Beco da Tia Caetana, hoje Rua Dr. Amynthas de Barros. Coisa impensável em Curitiba: motoristas cumprimentam pedestres de dentro do carro. E pedestres cumprimentam outros pedestres. A Lapa oferece popularidade aos seus cidadãos. Encontro um motorista de chapéu, que me faz pensar nos tropeiros que seguiam de Viamão para Sorocaba. O antigo caminho das tropas é hoje uma bonita avenida, com 2 quilômetros de jardim. Descendo novamente a estreita Rua Francisco Braga, e praticando uma nova boa ação, chego até esse antigo caminho, no trecho que hoje se chama Rua Dr. Manoel Pedro. De lá, alcanço o Terminal Rodoviário José Ribas e me preparo para voltar.

Enquanto lá estou, uma moça se aproxima de mim. Ela segura uma prancheta e uma caneta. Certamente está fazendo alguma pesquisa eleitoral, pois estamos na época. A Lapa conta com tão poucas placas de propaganda política que chego a pensar que se trata de um novo Cerco. Mas ela se aproxima de mim, e antes de me dizer qualquer coisa, pergunta se eu sou da Lapa.

Tive uma doce vontade de mentir e dizer que sim, que eu era da Lapa desde o começo, desde que eu me conheço por gente. E, ao mesmo tempo, tive uma vergonha tão grande de confessar que eu era da capital que o máximo que consegui fazer foi negar, sem dizer de onde eu era.

- Não, eu não sou da Lapa.

Foi uma decepção tão grande para ela que não quis mais papo comigo, e então caminhou na direção de um outro cidadão. Dessa vez, um bom e pacato lapeano.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 25/06/2013
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