É bola pra frente, Brasil

Hoje em dia raramente assisto televisão. Acho os programas chatos, de baixa qualidade, tudo se tornou um grande Big Brother onde qualquer programa autointitulado jornalístico insiste em criar matérias mostrando o cotidiano e a vida das famílias (de preferência das periferias, afinal está em voga atualmente, mas também existem os que mostram o luxo e o glamour das mulheres ricas) em uma exposição que beira o ridículo. É a família aprendendo a controlar as despesas da casa com um especialista, são as mães que trocam de família por uma semana, os pais que ficam responsáveis pela casa durante alguns dias enquanto as mulheres estão em um spa. Uma pseudo-educadora-perfeita que ensina mães como educar seus filhos. Casas que reúnem pseudo-artístas e famosos desconhecidos... Até os animais de estimação já entraram na dança, ganhando seu espaço nesses “Truman-Shows”... Mas, vez ou outra, ainda ligo o aparelho em um telejornal.

Em uma dessas raras ocasiões, vi a polícia tomar mais um morro no Rio de Janeiro. Uma preocupação para a copa do mundo. Até um Festival Literário a polícia organizou em um dos morros. Quem diria que a polícia, um dia, organizaria um festival literário? Com a presença de Ferreira Gullar e tudo. Quem diria, que um dia, o poeta que foi preso e torturado em 1968 e exilado em 1971 participaria de um evento organizado pelos militares. Tudo organizado militarmente e milimétricamente sem sair da linha programada, executado com perfeição e tudo isso exibido em rede nacional.

Quem diria que após 64 anos teríamos outra copa do mundo no Brasil? Quem diria que um dia, o Brasil, eterno país do futuro, teria verbas monumentais para construir e reformar estádios de primeiro mundo para realizar os jogos da copa. A importância do evento é tanta, que até uma escola, um parque aquático e o Museu da Memória Indígena correm o risco de serem demolidos para dar lugar ao novo estacionamento do estádio do Maracanã. Nada mais justo, afinal, somos o país do futebol, escola e museu não dão camisa pra ninguém, quem dirá um parque aquático. Não precisamos de escolas para aprender o futebol. O que precisamos, no momento, é de cursos de inglês para que nossos garis, garçons e flanelinhas possam receber bem nossos turistas. Coisa para Inglês ver. E tudo isso a tevê tem mostrado. Seu José, um gari de 56 anos, apareceu em rede nacional para mostrar que já aprendeu as primeiras palavras. Foi difícil compreender sua animação, devido à dificuldade que seu José tem de se expressar em português. A falta de dentes também atrapalha um pouco a dicção, mas disseram pra ele que no inglês, isso até ajuda. E seu José está feliz da vida em poder participar da copa do mundo, mesmo que não possa assistir a um jogo sequer no estádio. Mas seu José vai assistir pela televisão. A mesma que já mostrou ele, sem dentes, para todo o Brasil. Um orgulho só lá no bairro onde mora. Ali, bem ao lado de onde, finalmente, construiriam um hospital. Mas agora vai ficar pra depois da copa, no momento, o país tem outras prioridades.

Aqui em São Paulo, assim como no resto do país, a coisa não é diferente. A televisão também mostrou um conjunto habitacional, construído há algum tempo, bem ao lado de onde iniciaram, recentemente, as obras do estádio onde acontecerá a abertura da copa. Da televisão dava até pra ver os predinhos coloridos. Lugar privilegiado. Daria até pra escutar os gritos dos torcedores lá dentro. Apareceria na televisão, com toda certeza. E quem sabe até, o locutor não pedisse ao vivo, para que piscassem as luzes no primeiro gol do Brasil. Ficariam famosos. Apareceriam em rede nacional. A alegria era tanta, que na primeira matéria da tevê, logo que começaram as obras no estádio, era possível ver uma faixa estendida no conjunto habitacional com os dizeres: “Pra frente Brasil, estamos ao seu lado”. Na faixa também era possível ler a expressão “Bem-vindos” em cinco idiomas diferentes. Uma alegria só. Além de tudo isso, aqueles privilegiados moradores ainda ganhariam com a infraestrutura do local, o metro e um terminal a poucos metros de casa. Era bom demais pra ser verdade.

Agora, na última matéria exibida pelo telejornal, a faixa, assim como os prédios, já não aparecia mais. O condomínio foi demolido para dar lugar a um estacionamento e um conjunto comercial. Os moradores foram deslocados para uma nova habitação popular construída meio as pressas a alguns quilômetros dali, já na saída da cidade. Mas a televisão já mostrou que a copa trará melhorias para a região, e esses moradores, agora distantes do estádio, ainda poderão assistir aos jogos pela televisão, alguns podem até se candidatar como voluntários para trabalhar em serviços braçais de forma totalmente gratuita, uma honra, participar da copa do mundo. Por aqui, outro José, está feliz da vida em poder colaborar, será voluntário durante 20 dias copa, sem ganhar um tostão, recepcionará as pessoas na porta do estádio para encaminhá-las a seus respectivos portões de entrada. Quando o portão fechar, José ficará do lado de fora, esperando para auxiliar os torcedores na saída do estádio. A televisão mostrou a doçura, a descontração e a alegria que é a preparação dos voluntários. Um objetivo nobre, mostrar o que se passa em nossa sociedade em vésperas de evento tão importante, e a massa, que assiste, além de se informar, recebe também entretenimento e diversão de forma dócil e infantilizada, para que o público, assim como crianças, ao receber as doçuras, se calem...