INDIVIDUALIDADE
(Claude Bloc)



Certos dias, sinto que preciso dar uma parada. Isso é normal. São os dias de retomada, de reflexão, de reparo nos projetos que se esboçam com o passar das horas.

Olho-me no espelho e ajo antropofagicamente. Devoro os sonhos que percebo naquele reflexo, mastigo as saudades tão abrasadas e abrasadoras... Tudo ali tem sabor de vida, de aspirações, mesmo que apenas esboçadas ou pendentes, mas que por serem tão minhas, tornam-se [quase] tangíveis. Pelo menos penso assim. 

Fecho os olhos, afundo no silêncio, *imirjo em memórias que já não são minhas. De repente, me surpreendo absorvida, num pequeno instante de distração, por uma frase de Clarice Lispector: “espelho é o espaço mais profundo que existe”... 

Assim sigo. Assim, me deixo reflorir na imagem que vejo ali olhando pra mim. Vagueio pelas estrelas. Exploro tudo ao meu redor, sempre retida nesse poder de ver além das coisas captadas por um olhar, além das retinas. E isso prossegue indefinidamente - lembranças me (re)conduzindo além das noções fisionômicas daqueles rostos amigos que se sucedem sob minhas pálpebras e em minha mente. Tudo flui nesse espaço silencioso em que me deixo ficar deliciada pela paz e pela alegria. Capto essas feições, transformo-as e guardo tudo bem no meu íntimo. E só depois me sinto, aos poucos, emergindo, saindo da casca, digerindo esse presente, devagarzinho.

Sinto-me, enfim, de volta de uma espécie de sonho pelo qual andei através dessas passagens achatadas de minha estratosfera pessoal. Sinto-me de novo aquela menina que fui. A mulher em que me transformei ainda tão imersa nessa absoluta capacidade de voltar no tempo sem me prender a ele. Menina tímida em certas horas. Noutras, alegria pura e incontida. 

E assim, os retratos da minha alma se reorganizam, se reconstituem e se misturam em identidades dessemelhantes, agora tudo numa só camada, nesse interlóquio com a alma - fôlego da vida - impressão digital de um momento criativo, pois a individualidade se gasta quando vista no espelho.


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Obs.:


*imirjo - Na maioria das consultas que fiz, o verbo IMERGIR apresenta uma lacuna na 1ª pessoa do singular, no presente do indicativo. Porém, alguns autores apresentam a forma "imirjo" e outra "imerjo" para essa 1ª pessoa... Optei pela primeiroa forma por considerar mais condizente.