13.06.2013 – dia 6: pode chamar de dia 5.5

Não temos uma noite inteira de descanso. Nas horas de repouso, percebo a pulsação acelerada. O coração trabalha mais rápido para alimentar as células com o escasso O2. O sono foi pesadíssimo, revelando o desgaste do corpo. O jantar estava ótimo, com cardápio inesperado para as condições: batata frita! Lembraria disso em breve...

O combinado era acordar às 23:30 e partir 00:00. Às 23:50, o Paulo me sacode:

- Você tá bem? Não ouviu o Innocent chamando? Estamos quase saindo! Se arruma com calma, não podemos esquecer nada importante.

Aquele tumulto dos arredores não tinha sido suficiente para me acordar. Verifico os materiais necessários (basicamente acessórios contra o frio) e tomamos um último lanche. Hey, ho Let´s go! Era a hora da partida. Como repetia o Paulo, it´s a long way to the top if you wanna a rock ´n´ roll.

Ele tinha razão… Ainda no começo do percurso, percebo que o dia não está bom. Muito esforço em trechos simples. Eram muitos trepa-pedras fáceis, que ganham complexidade quando iluminados apenas com a luz da lanterna. Muitas roupas para agüentar o frio usualmente próximo a – 15ºC naquele horário. Suprimento de água em garrafas térmicas e o que eles chama de “comfort food”. No meu caso, a definição de chocolate! Levo meu gel de corrida no bolso para evitar congelamento. Eles voltariam intactos para o Brasil.

A previsão é de 6 horas de caminhada. O ataque ao cume era extremo. Quase 1.000 metros de deslocamento vertical. Perto das 3 horas, a fadiga se torna preocupante. O que era difícil, rapidamente se transforma em caótico. Uma queda minha deixou o Paulo particularmente preocupado. Eu parecia indefeso, sem reação, no seu ponto de vista. Discordo, mas não confiava muito na minha própria avaliação. Temos uma combinação perversa: mais tempo de subida significa mais esforço, mais frio e menos oxigênio. Ou seja, expectativa de melhora apenas no início da nossa descida, junto com a subida do Sol.

Os principais sintomas do mal da montanha são dor de cabeça, vômito, perda de apetite, insônia e diarréia. A piora é progressiva, mas a evolução não é necessariamente linear. O melhor remédio é descer. Não vou descrever os mais graves porque a minha irmã pode ler o texto. Não me caguei nas calças, mas me mexia como um bêbado. Subitamente, sem aviso prévio, revejo meu jantar. Assumo, vomitar me afeta psicologicamente. Remete a momentos difíceis, quando sempre venci o enjôo. Talvez seja falta de hábito. Ou de álcool... Quem mandou só tomar suco, coca-cola, guaraná, ice tea... O desafio agora era apenas mental. Fisicamente, eu já estava vencido.

Era questão de me recompor e pensar como resolver o problema. O Paulo, falante como quem faz um rápido passeio na praia, cita os All Blacks – time de rugby da Nova Zelândia, famoso pela determinação no campo de jogo. Ele segue com outras frases que me eram muito familiares. Parecia leitura de pensamento! Só faltaram os “passinhos de bebê” recomendados pelo ultra maratonista Dean Karnazes para momentos de dificuldade. Depois ele confidenciou: “Fui lembrando algumas frases do seu blog e do papo dos All Blacks. Acho que funcionou!” Pausas para descanso não eram recomendáveis naquele frio. “Pole pole” era quase um mantra.

Falhar na subida final seria péssimo, mas vomitar era humilhação. A segunda vez aconteceu muito perto do primeiro cume. Os guias tentam me incentivar. Respondo com firmeza: “eu não preciso de motivação. Tenho a minha suficiente. Preciso de informação. Falta mesmo pouco? Como é o caminho? Como avaliam a minha situação?”

Classificar a minha argumentação como “firme” é a minha versão da história. A julgar pelos comentários e pelas brincadeiras posteriores, acho que eu poderia estar “um pouco bravo” no momento...

Eles garantem que seriam mesmo 30 minutos e que muitos outros participantes estavam como eu, ou em condições piores. Eu estava apto a continuar! De fato, bastava olhar ao redor e confirmar. Ainda era noite quando me sentei ao lado da placa que indicava Stella Point. Tecnicamente eu estava no cume, receberia diploma na saída do parque. Pronto! Vamos descer?

Estava incompleto. Eu sabia disso.

- Vamos ao outro cume! Descansa um pouco e vamos! – sentencia o Paulo.

- É longe?

Perto, longe, logo ali... Os termos são naturalmente imprecisos, mesmo nas CNTPs. Naquelas... “CATPA” * era questão de foro íntimo! Ali, a garrafa térmica ao lado estava muito distante! “São apenas 100 metros!” , informam os guias. Claro, 100 metros... verticais!

O caminho é belíssimo. Terei que confirmar pelo vídeo e pelas fotos que o Innocent tirou com a minha máquina. Eu tinha apenas um foco. E aquela placa de Uhuru Peak nunca aparecia... O depoimento que gravei no retorno ilustra o drama. Aguardem o vídeo.

Assim como a distância, em alguns momentos o tempo também é relativo. Demorou? Não sei... Pole pole! Passo a passo, a miragem alvejada ficava ora mais próxima, ora mais distante. Finalmente, cheguei. Não estava alegre. A sensação era fantástica, indescritível. Verdadeiro caldeirão de emoções. Estava apenas exausto. E precisava sair dali imediatamente. Poucos minutos no cume, tempo para algumas fotos.

A informação pouco crível dos guias se confirma. Descer meros 100 ou 200 metros (verticais!) pode melhorar radicalmente as condições. Digo, os efeitos da altitude. O cansando, infelizmente, não... Na volta, estou bem melhor ao passar por Stella Point, por exemplo!

As rotas de descida são muito inclinadas, desconfortáveis. Ou simplesmente “uma merda” como definiu o Paulo. Chego ao acampamento exausto, mas sem qualquer efeito da altitude. No caminho, o estômago se manifestou novamente, mas não havia nada passível de devolução. Ainda que ele tenha tentado.

Abro a barraca e deito em busca de descanso. Lembro vagamente de uma mão me entregando um copo de suco e de um vago e distante “congratulations!”. Eu estava sob esforço físico extremo há quase 9 horas, no frio e apenas tomando água. Nunca passei por um teste físico tão intenso. Sinceramente, espero que essa liderança nunca seja substituída em alguma maratona. Acho que sempre poderei aprender lições com a minha experiência no Kilimanjaro.

* CNTP é uma famosa sigla usada na Física e na Química. Significa “Condições Normais de Temperatura e Pressão”. Na minha adaptação, CATPA: “Condições Anormais de Temperatura, Pressão & Altitude”.

ARunning
Enviado por ARunning em 24/07/2013
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