Do ofício de escrever - vaqueiro que tange luz de estrelas...

Do ofício de escrever - vaqueiro que tange luz de estrelas...

fagulhas

que iluminaram o xisto ~

pensando nisto

Dizendo do ofício de versejar, estabeleceu o moçambicano Mia Couto:

"O poeta não gosta de palavras:

escreve para se ver livre delas."

Se a referêcia é no sentido de memórias, concordo com ele, porque um cinquentão como eu vai se enchendo delas, deambulando sem freio e sentido de um nado para o outro, na mente, como água na alforja.

Mas, quanto às palavras, enquanto signo de linguagem, objeto de expressão e comunicação e conteúdo e, não sei, objetos vivos, moldáveis, enredantes e moldantes de vida em si...

...Às vezes me enamoro delas. Fico dias e dias com uma ou outra na cabeça, explorando seu som, as possibilidades de seus sentidos e, especialmente, a sua própria forma - ou corpo, sem que escreva nada a respeito disso.

A partir dali, ela entra numa espécie de relicário, onde a memória cuida de depositar, carinhosamente. De um modo ou outro, fica criado uma espécie de arquivo que guardam todas aquelas coisas refletidas ou associadas, mas sem data, com elas...

É uma coisa meio doida, mas é assim.

As palavras, no sentido de memória, aí sim, em certa medida e em certo tempo, começam a virar uma espécie de fardo, de estranhamento incomodo, do qual tenho que me livrar, mesmo que, sendo incomodado de um jeito, diga de outro, até me sentir aliviado.

E nessas labutas, muitas vezes me surpreendo, porque o dizer de uma coisa leva a outra e, outra, se não no resgate de coisas, na invenção de outras.

É como se, durante todo o tempo, eu me sentisse provocado, feito um lavrador, que vê em toda terra cultivo e em cada palmo de chão, terra amojando, sementes inchando, plantas brotando e, arbustos subindo para o céu, em busca de luz, independência e forma própria.

Como tantos outros que se arriscam no ofício, de vez em quando penso que é ilusão, a ideia de que as palavras são fruto de longa, tenaz e cultivo humano. Às vezes sinto que a palavra é a expressão do universo que encontrou em nós o jeito certo de vir ao mundo, para falar da imensidade e beleza da Criação.

O primeiro homem que contemplou e intuiu a imensa magia do universo sentiu certamente aquele calor do fogo que são as palavras, que começou a consumir e dirigir parte de seus tempos e dias. Naquela momento, houve certamente, um momento de captura e um compromisso não dito, conjurado para todas as gerações.

Quantas e quantas vezes, os mestres, escritores e profetas, se surpreenderam no transe parturiente em que as palavras escritas apareceram como algo fulgurante, brasa com tinta estelar, sem dizer exatamente de onde vieram? Eu, nas minhas mínimas e humildes escritas, muitas vezes me senti assim...

- Vaqueiro que tangeu o gado das estrelas!