NÓS, POETAS!...

Encontrei-a ocasionalmente num espaço comercial, quando fazia umas compras para reabastecer o meu lar de alguns bens essenciais.

Ela veio logo cumprimentar-me com a simpatia habitual e eu correspondi de modo condizente.

Já não nos víamos há um ano ou mais, desde que eu – por motivos vários – deixei de comparecer ao encontro mensal de poetas da nossa região.

Fiquei a saber que também ela tem aparecido esporadicamente e notei na sua voz algum desencanto e tristeza – aliás sempre a achara uma pessoa triste, apesar da temática alegre dos seus poemas.

Reparei que a acompanhavam uma mulher mais jovem e um rapaz de uns doze anos - que entretanto passaram um pouco adiante observando os produtos expostos.

Foi aí que ela se deixou ficar para trás e confidenciou-me as dificuldades gerais da população e da sua vida em particular.

Falou-me de um divórcio litigioso da filha e da rebeldia do neto, com a difícil aceitação da separação dos pais – e com um gesto do olhar indicou-me os seus dois acompanhantes. Além disso, o empréstimo da casa deixara de ser pago e teve de acolhê-los em casa e ajudá-los com a sua magra pensão de viuvez.

Acrescentou então que o marido falecera há seis anos e que logo ali a sua vida conhecera uma curva descendente que nunca mais parara de crescer.

Lembrei-me que deveria ser mais ou menos por essa data que ela começara a aparecer nos nossos encontros, trazendo até nós uma emotividade forte de quem já passara por muito tipo de convulsões, apesar do ar desenvolto e alegre das suas apresentações, que por vezes era reforçado pela sua voz cristalina em algumas canções da sua mocidade, com que nos brindava.

Sempre tive para mim que aquela mulher guardava dentro de si muito sofrimento e amargura - como aliás a maioria dos poetas - e que a escrita era apenas um pretexto para atirar para fora parte da sua dor.

No fundo é uma das maneiras de desabafar que o ser humano encontra, ainda com a vantagem de poder fazê-lo dando-lhe um toque de arte.

Acredito que a morte do marido precipitou o seu processo criativo que, de outro modo pode ser – e é em muitos casos – mentor das depressões e outro tipo de doenças.

Pessoalmente, nada disto me causa espanto pois fui percebendo ao longo dos anos que existe em cada poeta um ser que não consegue gerir convenientemente as emoções do quotidiano e que, sem o escape da palavra escrita, ficaria refém destas.

No fundo, ninguém é genuinamente livre nesta vida e se alguns conseguem ignorar sentimentos – por mais básicos que sejam – é porque as suas existências são do mais antipoético que

existe e cenário mais triste não consigo imaginar.

A nossa conversa ficou por ali e eu desejei-lhe felicidades para toda a família, recomendando-lhe que não parasse de escrever – por sentir que tal pode fazer a diferença – e que aparecesse na próxima tertúlia.

Acho que também eu preciso de regressar urgentemente àquele encontro!...

26.07.2013, Henricabilio

HENRICABILIO
Enviado por HENRICABILIO em 28/07/2013
Reeditado em 15/08/2013
Código do texto: T4408425
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