Mangabeiras

Naquela gélida manhã de segunda-feira, eu estava subindo o morro do Mangabeiras (bairro nobre de Belo Horizonte) de braços dados com minha avó. Com olhar curioso de menina moça, eu fitava as casas que esbanjavam de tudo, menos humildade. E ficava a cutucar meus neurônios, pensando como seria a vida daqueles que moravam nas belas sacadas, com jardins aparados, cercados por seus carros de luxo e luzes que se acendem ao bater de palmas. Empregados a postos esperando o mais leve movimento dos dedos do patrão para atender ao pedido. Deveras uma vida fácil.

Na verdade, pouca coisa eu podia imaginar. Aquela vida eu não conhecia. Fui criada com galinhas no fundo do quintal, angu como acompanhamento e broa de fubá no fim da tarde.Confesso que tive um pouco de inveja dos donos daqueles dedos. Não por suas lareiras chiques e automáticas na sala, ou por suas cortinas importadas que os separavam do mundo lá fora. Mas sim por eles não precisarem subir o morro do Mangabeiras para chegar ao hospital.

Depois de muitos suspiros, paradas para esperar a avó recuperar as forças e ouvir reclamações de dores nas “juntas”, chegamos ao hospital. Eram 6:30 da manhã e o sol, tímido, se escondia atrás das nuvens.

As cadeiras azuis (combinando com as paredes) estavam quase todas ocupadas. Gente de todo jeito, gente de toda cor. Apressei-me para reservar dois lugares enquanto aquela senhora de idade que dera a luz à minha mãe apresentava ao recepcionista os numerosos papéis com o símbolo do SUS que eu já vira dezenas de vezes. Rapidamente, o hospital estava lotado. Pacientes parados, esperando o nome ser anunciado. Médicos atravessando aquele mar de gente, se afogando em pedidos de licença. As enfermeiras também tentavam abrir caminho entre aquele emaranhado.

Com o intervalo de algumas horas, os médicos faziam uma breve aparição e chamavam o nome de alguns poucos sortudos. Felizmente, o esforço de acordas às 3 da manhã não foi em vão. Ouvi, lá da cadeira azul, a médica gritar com sua voz rouca o primeiro nome de minha avó e o nome da família.

Fomos transferidas para uma sala de espera, com aproximadamente quinze pessoas. Uma senhora que insistia em não deixar a ombreira cair em completo desuso, outra com um terço na mão. Moças jovens, com olhar sofrido. Um homem gordo e alto reclamava de uma dor de dente. Uma mulher de meia idade lia no canto da sala o jornal “Super”. Alguns sussurravam entre si casos de doenças graves, outros relatavam a árdua jornada até o hospital. Vindos de cidades vizinhas, tinha gente ali que enfrentou doze horas de viagem para chegar ao hospital no alto do Mangabeiras.

Todos na sala –independente de sua naturalidade, independente de todas as diferenças- se viram no mesmo lugar, na interseção do destino, esperando por um médico que não aparecia. Histórias (ou talvez estórias, não se sabe) de vida começaram a ser narradas, casos da terra natal, fofocas sobre alguém que apenas quem as conta conhece.

A enfermeira passou pelo corredor. Depois, ouvindo seu salto abafado contra a cerâmica do piso, eu a vi voltar e entrar na sala. Ligou a TV. E, sem deixar palavra, saiu.

Eu, no canto da sala, observava as pessoas em segundo plano. No primeiro, Eça de Queiroz me contava sobre Jacinto. Percebi que os donos das casas que eu vira anteriormente, quando subia o morro, eram diversos "Jacintos". Com o passar das páginas e as breves entreolhadas para os quase residentes da sala de espera, via caras e expressões que demonstravam indignação com o que aparecia no noticiário. “Morta a tiros pelo ex-marido”, “Acidentes na BR O40”, “Rua em péssimo estado causa desconforto a moradores”...

Breves “Isso é um absurdo”, “Onde o Brasil vai parar?” emergiam da boca dos telespectadores.

Logo chegou a tarde e começou o Vale a Pena Ver de Novo (não vale) e as mulheres e homens se calaram para rever o último capítulo da novela repetida. E riram, se alegraram, tudo graças aquela tela colorida e animada. Se apaixonaram pelo "plin-plin".

E eu, com o Eça na mão e a avó fatigada do lado, percebia que tudo acontecia naquela sala. Só o médico que não aparecia para dar um final feliz nessa novela brasileira –antes fosse mexicana- que se chama “Sistema Único de Saúde”.

Emily Soares
Enviado por Emily Soares em 31/07/2013
Código do texto: T4412993
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