Cronica Simples

Caro leitor, antes de tudo, quero quero adverti-lo de que, se você é uma pessoa que está apressado com o trabalho, vive uma vida de escritório, ou reclama da vida por não poder comprar o novo modelo de aparelho celular da Apple, na certa não vai entender minha modesta crônica, ou mesmo que o faça, não irá apreciá-la com a devida importância. Não que eu pretenda aqui lhe designar qualquer, pelo contrário, apenas serei portador dessa narrativa de casos corriqueiros, que podem acontecer todos os dias, com qualquer um de nós. Mas por se tratar exatamente dessa naturalidade de fatos cotidianos, e da singeleza que eles representam, é que eu me reservo o direito de tratar o ocorrido com a importância que ele merece. Ora, mas a importância é relativa e muitas vezes arbitrária, dê-lhe pois a que achar que valha. Pré avisos informados, passemos ao que levou-me os dedos ao teclado.

Em um dia normal no fim da tarde, embarcava eu na rotineira barca de ferro e rodas com motor a combustão, com destino ao campus da universidade. Sentei como sempre faço, e tratei de dar continuidade ao rito sagrado; tirar os fones de ouvido da bolsa pô-los na orelha e ignorar tudo a minha volta até o fim da viagem (nem sempre confortável, mas invariavelmente tranquila).

Alguma coisa naquele dia, no entanto, fez-me mudar o hábito. Resolvi que iria ao invés de me fechar, observar. Comecei pelos tripulantes. Pessoas das mais variadas; mulheres com ar esnobe, homens de terno, homens de roupa normal, pessoas falando ao celular, outras assim como eu, com fones de ouvidos, crianças sendo crianças com a exaltação que as caracteriza... Só uma coisa parecia compartilhada por todos ali, ironicamente, era o total desprezo por tudo a sua volta. Então percebi que não era o único que ignorava tudo a minha volta, todo mundo ali fazia isso.

Começamos a navegar o oceano de asfalto, e a paisagem me tomou por completo, contrastando o seco árido das cercas de arame e os pés de chique-chique, com o esplendor dominante da estrela maior do nosso sistema, abrilhantando a tarde quente com um lindo crepúsculo. Como nunca tinha notado isso antes? A viagem seguiu e no meio do caminho ancoramos brevemente em um porto pra embarque de um marujo. Subiu ao convés uma figura que requer aqui a maior atenção possível, um homem com roupas de trabalho, não consegui diagnosticar seu ofício, mas na certa seu local de trabalho não era em um escritório. As roupas sujas, a marmita, a garrafa térmica, o suor que exalava e outros detalhes que me fogem a mente à um caráter descritivo (mas que guardo bem vivos em memória) denunciavam sua profissão sofrida, seja ela qual fosse. O que me chamou atenção em seu semblante cansado, foi o sorriso, embora tímido, que ele trazia no rosto. Sorriso de quem conhece o sofrimento da vida, mas que ainda sim encontra alegria de vivê-la. De imediato, quase que como tomado por um impulso, procurei com a vista em toda a barca, alguém que sorrisse também. Nada. A não ser as crianças nos colos de seus pais, não havia ninguém que parecesse compartilhar daquele gesto típico de felicidade com o pobre diabo. A cobradora gentilmente mostro-lhe um lugar vazio pra que ele sentasse, ao lado de um rapaz que parecia absorto em papéis importantíssimos, e ignorou completamente a presença do senhor sorriso. Foi então que eu percebi, com um lampejo desses que furtivamente vêm a nossa mente tão depressa quanto se vão, que o trabalhador recusou-se sentar ao lado do importantíssimo homem dos papéis, por culpa de um possível complexo de inferioridade. Ele, sujo e pobre, mesmo pagando passagem como todos ali, inclusive como o homem dos papéis importantíssimos, sentiu-se desmerecedor desse conforto de viajar sentado, Talvez por não se achar digno de sentar-se ao lado de tão ilustre criatura letrada. Essa hierarquia social de valores, que existe na cabeça, não só do marujo suado, mas na de muitos e muitos outros marujos, é o que torna cada vez maior o poder do opressor. Passou-se toda a viagem e cheguei ao meu destino como todo dia comum, mas o sorriso daquele homem sofrido não me saiu da cabeça. Um sorriso comum, que provavelmente fosse uma mera marca de simpatia, tão escassa nos dias de hoje, talvez fosse satisfação por estar retornando à casa no fim do dia, não sei. Mas me pergunto, por que as vezes a gente acha tantos motivos pra não sorrir? Porque o tempo é tão precioso a ponto de nos privar desse contato com coisas tão simples e ao mesmo tempo tão belas como um por do sol, ou um sorriso?

Aquele sofrido homem viajou de pé até seu destino, mas na minha opinião não havia em toda barca, um só tripulante que fosse mais digno de um banco pra sentar-se. Se aquele marujo da marmita, que na certa da um duro danado pra levar o pão pra casa, consegue dar um sorriso no final de um expediente duro de trabalho. O que estou eu fazendo da vida que não posso fazer o mesmo?!

Leones Silva
Enviado por Leones Silva em 01/08/2013
Reeditado em 06/08/2013
Código do texto: T4414215
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