Traumas de Infância

As pessoas adultas quando fazem uma criança passar por uma situação vergonhosa parece esquecer que traumas de infância nos seguem por toda a vida. Sempre amei muito a minha avó, tanto que desde a mais tenra idade só a chamo de mãe, mas o que ela me fez sofrer aquele dia nunca saiu da minha lembrança.

A minha avó gostava muito de plantas e numa manhã qualquer ela me acordou com uma obrigação de ir a uma casa de uma conhecida dela buscar uns caqueiros para acrescentar ao montueiro de vasos de rosas, flores, coqueiros, samambaias, violetas, onze horas e tantas outras plantadas em latas de tinta e de leite, manteigueiras e panelas de alumínios velhas que eram espalhadas pelo quintal. As mais bonitas e vistosas iam para a sala e enfeitavam a casa, ora em um canto, ora sobre a mesa, ora inda sobre as estantes ou raque ou em todos esses lugares ao mesmo tempo.

Eu devia ter uns dez a onze anos de idade. Era um menino tímido e, a depender de quem estivesse próximo, muito calado. Por esse motivo, sair pelas ruas em pleno dia de semana, em férias escolares, carregando uma galinhota com um pé seja lá de quê em cima e, ainda mais, com a vovozinha do lado, não me pareceu uma ideia muito legal.

Tentei me esquivar de todas as formas, mas não teve jeito: naquele tempo neto obedeciam a avós, filhos ouviam os pais. E então partir com o carrinho de mão pelo bairro. Durante todo percurso deixei minha avó ir à frente guiando o caminho e eu a seguia mantendo certa distância, mesmo ela caminhando lerdamente e parando casa sim casa não para conversar com alguém. Quando avistava uma rua cheia de crianças pedia pra minha avó carregar a galinhota, alegando cansaço, e fingia que nem a conhecia. Não queria dar motivos para ser resenhado durante semanas, meses, ou quem sabe até anos com apelidos do tipo “neguinho do frete”, “pé de planta”, “gari”, “tiago galinhota” em vez de Tiago Mota, ou seja lá o quê a criatividade maligna dos meus colegas poderiam inventar.

Ao chegar à casa da doadora de caqueiros eu estacionei o carrinho e me sentei na calçada enquanto minha avó era atendida pela senhora. Eram amigas de tempos, mas a forma pedante que a mulher falava parecia querer demonstrar certa superioridade sobre a minha avó, talvez por que a casa dela fosse mais bonita do que a nossa, os móveis mais novos e as paredes mais limpas, reparei isso quando fui obrigado a entrar.

Na vasculha que fiz por toda casa bati os olhos em um quadro que sempre me chamou a atenção, era um retrato de um dinossauro enorme invadindo uma metrópole. Enquanto fantasiava mil e uma coisas olhando a imagem, elas negociavam os valores das plantas, só aí descobri que nada seria de graça e que mais uma vez minha pobre vozinha seria enganada. Depois que acertaram o valor a outra ainda ofereceu um mesinha velha que ela tinha no quintal, disse com todo desdém que minha avó poderia levá-lo por um precinho bem pequeno. Imaginei a vergonha que seria voltar para casa com todas aquelas tralhas e encarei minha avó tentando fazê-la não cair no golpe. Naquele tempo crianças não se metiam em conversas de adultos e a única coisa que pude fazer foi balançar disfarçadamente a cabeça, coçar a garganta, franzi o cenho, mas nada adiantou.

Minha querida avó consumou o negócio com toda alegria e me fez dar várias voltas ao quintal para apanhar os caqueiros e ajudá-la com a mesa velha enquanto a mulher agradecida por se livrar daqueles lixos sorria descaradamente sua vitória sobre os pobres ignorantes.

Quando imaginei que tinha acabado o pior aconteceu. Na hora da despedida algo na parede chamou a atenção da minha avó. Ela olhou, contemplou e meio que encantada disse:

- Que quadro bonito, né menina?

Pensei que ela falara da foto do dinossauro, mas não, ela fitava outra direção. A dona da casa seguiu o olhar dela e balançou a cabeça junto comigo.

- Né um quadro não, é um relógio de parede.

Olhei para minha avó, cheio de vergonha, tentando pedir para ela terminar a conversa ali. Mas ela prosseguiu:

- E esses dois rapazes aí no relógio, são seus filhos?

Senti uma pontada forte no coração. Encarei a galinhota, encarei a mulher.

- Não, são cantores, é Zezé de Camargo e...

Antes mesmo dela terminar já estava na esquina carregando o carrinho de mão sem olhar para trás.