Nosso maloqueiro preferido
 
Ninguém sabia ao certo de onde ele tinha vindo. Muito menos como fora parar nas ruas. Simplesmente apareceu. O nome? Machado. Só.
 
Baixinho, peito e costado largos, tez morena, barbudo. Sorriso fácil, apesar de sério na maior parte do tempo. Dicção perfeita, português muito bom, com todos os esses e erres no final das palavras. Colocações pronominais corretas, verbos empregados com acerto. Diziam que falava latim e grego fluentemente. E que fora seminarista, chegando às vésperas da ordenação. Nada mais.
 
Respeitoso com todos; homens, mulheres e crianças. Aos poucos, foi aprendendo quem era quem no bairro. Nome, profissão, endereço. Filhos de quem eram os piás que jogavam bola no campinho improvisado ou bolinha de gude no chão duro da rua sem movimento. Divertia-se vendo a molecada em volta do poste jogando tique e distendendo a mão no esforço muitas vezes inútil para tentar provar que a arruela ricocheteada tinha caído a menos de um palmo da arruela do adversário. Os que tinham dedos curtos pediam a outro de mão mais crescida para conferir o espaço. Começava a discussão. O Machado ria.
 
Aqui ou ali, ele ganhava seu prato diário de comida. Uma pinga. Aí o bicho pegava. Quando ganhava cachaça demais, punha-se a discursar na esquina. Bebida além da conta o fazia incluir entre sentenças em latim ou grego alguns palavrões cabeludos. Ninguém interferia. Logo o sono batia, ele ia se cansando, aumentando o intervalo de silêncio entre as frases e o repertorio escasseava. Então, ele procurava um canto, o abrigo de uma marquise, aquietava-se e dormia.
 
Assim como não o deixavam passar fome, proviam-no com roupas usadas. Certa vez, ganhou uma capa de chuva de gabardine cáqui que não tirou mais. Talvez por ter gostado tanto dela, temia perdê-la ou confiar sua guarda a alguém. Ou porque ela lembrasse os tempos de batina no seminário.
 
Trabalhar, no entanto, não era o seu forte. Em pouquíssimas ocasiões foi visto com as mãos no cabo de uma enxada capinando quintal ou jardim. Não dava para o serviço. Devia ter mesmo vocação para intelectual.
 
No bairro, nunca houve mendigos ou desocupados. Quem sabe por isso o Machado tenha recebido cuidados e apreço de tanta gente. Não tínhamos maloqueiro. Assim, quando ele chegou, tratamos inconscientemente de segurá-lo, para que não fosse juntar-se aos do centro da cidade. Ali permaneceu durante muitos e muitos anos. As últimas lembranças dele que me afloram, já o trazem de cabelos e barba grisalhos.
 
O bairro foi mudando com o crescimento da cidade. Novos moradores somaram-se aos antigos. O asfalto foi chegando. Mais carros e ônibus nas ruas. A presença do Machado, com o passar do tempo, já não era mais tão evidente. Seus discursos de bêbado culto foram sendo gradativamente abafados pelos ruídos dos motores e pelo som da televisão na sala de uma ou outra casa. Depois em todas.
 
Um dia, alguém lembrou: e o Machado? Ninguém soube responder onde ele andaria. Sumiu sem deixar pista. Engolido talvez pela indiferença que viera embaçar a visão e embrutecer o coração das pessoas do lugar.

Contudo, o menino dentro de algum homem de hoje, ao rememorar as peladas no campinho do terreno baldio, as disputas de figurinhas no bafo, o baque surdo da arruela ricocheteando no poste de madeira, seguido das encrencas do palmo meio roubado para medir a distância entre duas arruelas, no jogo de tique, certamente será capaz de entrever a figura do indivíduo atarracado com as mãos nos bolsos da capa cáqui e um sorriso divertido quase escondido pela espessa barba. Ou de pressentir o mesmo vulto entre as bolinhas de gude no chão batido de uma rua tranquila. É o nosso maloqueiro preferido fazendo o favor de nos revisitar.


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N. do A. 1 – Na ilustração, Jogando Bola de Ivan Cruz (Rio de Janeiro, 1947).

N. do A. 2 - Esta crônica faz parte da antologia do III Concurso Literário Cidade de Paranáguá, (2016).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 09/08/2013
Reeditado em 30/04/2021
Código do texto: T4426202
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