Eu não sei ocupar o seu lugar.

Já troquei os móveis de lugar: A cama foi parar na parede oposta à porta, embaixo da janela, já que você gosta de olhar a noite quando perde o sono. O computador foi desconectado, guardado numa caixa empoeirada no “quartinho da bagunça”. Aproveitei e troquei os lençóis, pois sei que não gosta de vermelho e o rubro dele já está desbotado pela espera. Tirei o quadro do Piet Mondrian que você não suporta e coloquei em cima do armário. O prego ficou lá, aguardando o novo quadro que você disse que traria. Desocupei seu lado do armário que enchi de coisas minhas para preencher o vazio que você causa. As gavetas eram todas minhas, agora três delas são suas. Acho que conseguirá sobreviver somente com elas. Tudo com você é muito provisório, temporário demais para você querer um armário todo. Espaço de mais. Presença de menos.

Aquela mesa de centro da sala que era causadora de múltiplas topadas foi vendida. Ok, eu não vendi, dei de presente uma amiga que está de casa nova. Realmente você tinha razão: a sala ficou mais ampla. Nada mais atrapalhará nosso caminho. Até o tapete escorregadio se foi. Aliás, nessas coisas de partidas, você e o tapete têm muito em comum. Desculpe, prometi não te criticar.

O Cabernet chileno está na geladeira e pode ficar tranquilo que eu comprei as benditas taças que você sempre reclamou que faltava. Realmente não entendo delas. Só entendo de xícaras, chás de camomila e tranquilizantes. Mas isso você não conhece. E espero que nunca prove desta dose.

Os celulares estão desligados e os despertadores adormecidos: arranquei suas baterias, suas vidas. A casa está limpa, fresca, silenciosa e na medida do seu gosto. Eu só esqueci uma coisa: você não está aqui! Não lembrei de te incluir no meu check list.

Quero alguém que tome um porre comigo numa noite de sábado aqui, dentro de casa mesmo, que comece no sofá e que termine na cama e não ligue se o vinho do Alentejo será sorvido em copo americano. Que goste de observar a noite, peça para eu sentar ao seu lado e fale sobre a vida. Que a me ver desanimada com as circunstâncias corra até o aparelho de som e coloque James Morrison bem alto e me convide para cantar “This Boy” aos berros pela casa, num inglês errado e desafinado. Que me agarre pelas costas e me dê um beijo no pescoço quando eu estiver com Alighieri nas mãos. Que despeje seu mundo em minhas mãos para eu cuidar. E que eu possa caber dentro do seu abraço.

Quero todo esse sopro de vida, essa felicidade clandestina e popular, sem prescrição médica. Sem mandar fabricar, esperar a encomenda chegar. Sem observar a tecnologia inventar, sem avisar com antecedência. Sem aguardar você querer.

Eu queria outro alguém para completar a cena, outra pessoa que entre em mim, encaixe seu corpo no meu, ajustando-se em meus sonhos, minhas expectativas, minha vida.

Você já fez parte do meu escopo, meu roteiro, meu esquete. Agora você é saudade, cor desbotada, vaso sem flor, luz apagada e rascunho descartado.

ARYANE SILVA
Enviado por ARYANE SILVA em 17/08/2013
Código do texto: T4438447
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