Um dia em Teresina

Em uma tarde de 2012, depois do trabalho, enquanto o sinal de trânsito permanecia vermelho e meu pensamento voava na tentativa de fugir do estresse, eu avidamente pensava sobre a necessidade urgente de férias. Sair um pouco de cena, deixar tudo para depois e não viver sob a condição caótica da rotina. Esquecer a pressão no emprego, os compromissos de casa, as atividades sociais, a vida nossa decretada e regulamentada de cada dia. No intervalo dos quarenta segundos parados ali no fim da avenida, resolvi meu destino: sair pelo Brasil sem compromisso. Por que não? Talvez a solução fosse essa, até porque os destinos nas férias sempre se repetiam. Os problemas se acostumaram com eles. Litoral, serra ou casa da tia, já era mais do mesmo; não que fosse desagradável ou ruim, apenas perdia-se gradualmente um pouco de brilho e desafio. Sinal aberto, segui meu caminho e a decisão tomada acompanhou-me.

A ideia permanecia na cabeça: uma mochila nas costas, subir até o topo do nordeste e vir descendo sem pressa. Passaria um, no máximo dois dias em casa cidade, dormindo nos ônibus e almoçando aonde desse. Celular apenas para mandar torpedos e não deixar a família preocupada. Sem roteiro fechado, definido e o espírito desprovido de qualquer intenção que me prendesse às raízes. Sou um cidadão do mundo, pensei, para aumentar o ânimo e criar mais coragens ante os comentários que ouvi. Tais como que não adianta fugir, na volta os problemas estarão aqui esperando; minha mãe perguntando o que foi que ela fez; os amigos zombando e me chamando de Rondon; ou a maioria, pensando que eu estava indo curar um coração partido. Contra tudo e quase todos comprei minha passagem de ida, preparei a câmera fotográfica, respirei fundo e parti rumo ao desconhecido.

Era por volta de duas horas da manhã quando levantei, me arrumei e desci rumo à rodoviária. Estava em um hotel na beira da estrada e a cidade era Bacabal, no Maranhão. Vinha de São Luís com destino ao Piauí quando decidi parar ali por algumas horas. E depois de conhecer o município de nome peculiar e tentar sem sucesso comprar uma camiseta do time local, embarco em um ônibus executivo (luxo nessa ocasião) à espera da próxima parada na viagem.

Chego a Teresina logo cedo, sob os primeiros raios da manhã. A ignorância geográfica me impedia de saber que ela faz divisa com Timon e fica bem abaixo do litoral. Desembarco em uma rodoviária agradável – ouso dizer bonita – e grande, comparando com as outras da região. Meu primeiro impulso é ir logo ver os horários e comprar a passagem para o próximo destino. Mas paro no meio do caminho e me envergonho. Que espécie de convidado eu seria se de pronto me dispusesse a ir embora? Mal cheguei e já penso em partir? Desviei-me do caminho e, ao invés de ir às bilheterias, cruzei a área das lanchonetes, para a melhor maneira de começar o dia: cuscuz de milho com ovo frito, queijo e um não muito generoso copo de café com leite formando um prato visualmente lindo. Na verdade a harmonia do cardápio, a beleza do prato que me instigaram quando cheguei e vi algumas pessoas comendo com gosto àquela hora – não poderia ser simplesmente fome. Tinha algo de bom no cuscuz, sua cor, textura, cheiro agradável, que nem me preocupei por escutar os conselhos de minha mãe: “Filho, não coma nada na rua”. Vieram à tona os pensamentos de criança: “O que não mata engorda. Ou cria anticorpos”. Após regalar-me sem muita culpa mantive o protocolo e fui ver meu próximo destino. Petrolina à noite. Tinha tempo de sobra ainda.

Qual seria a visão de um sudestino em Teresina se as informações que nos chegam via mídia já vêm carregadas de ruídos, manipulações ou preconceitos? Confesso que fui esperando encontrar um lugar como nas piadas de Dadá ou nas reportagens contra a Phillips. Ledo e agradável engano. Tá certo que o meu primeiro empecilho foi o transporte coletivo lotado da manhã. Todavia não é mais privilégio de Teresina, outrossim, a realidade de quase todas as cidades de médio e grande porte no país. Além do mais, enquanto o povo estava indo trabalhar eu era um turista, levando a vida a passeio e sem compromisso naquele momento. Que vergonha para mim! Declinei aos dois primeiros ônibus entupidos, um não parou e embarquei no quarto.

Que beleza de Centro! Praças arborizadas, arquitetura imponente e gente simpática que sabe dar informação. Primeiro andei lentamente pelas ruas da cidade (elas misturavam-se entre histórico e modernidade, confundindo minha cabeça se o tempo tinha avançado ou se seguia seu curso sem pressa) vendo os prédios públicos, as edificações antigas, as igrejas... A cada duzentos metros eram umas quinze imagens captadas; não queria perder nada, nenhum ângulo. Até o muro pintado com o cartaz de uma loja de duplo sentido não escapou da minha lente. Corri para os Correios para enviar um postal à minha mãe e amigos, no fundo queria que eles sentissem a emoção que eu sentia naquela hora, coisa que nenhuma foto bonita com palavras poucas escritas à mão retratariam. Mas era o que tinha para o momento. Depois vieram as visitas à Casa da Cultura, Central do Artesanato, Museu do Piauí, tentando adequar o ritmo frenético da “visita de médico” com a atenção que o paciente merecia. Era passeio para mais dias... E tome mais fotos: das esculturas de ferro, dos artesanatos, do cortejo feito de barro, das pinturas (as permitidas!), das fachadas do sobrado, das entradas resplandecentes ou das visitas guiadas. Guardava tudo na memória e no cartão de memória com cuidado para não perder nenhuma das duas. Ainda tentei o Arquivo Público, que fechado para obras não pôde me receber nem contar sua história.

Quando dei por mim já tinha passado e muito a hora do almoço. Indicaram-me o restaurante flutuante do parque onde acontece o encontro dos rios que o metrô deixava perto. Porém, para minha surpresa o metropolitano era formado apenas uma composição – a mesma que ia era a que voltava – e eu tinha acabado de perdê-la. Olha, contando ninguém acredita... Nem eu acreditei. Ainda hoje mostro a foto com os horários para os mais desconfiados. Contentei-me por enganar a fome em uma galeria que existe em frente à estação, seguiria até o shopping para almoçar. Vi o mercado do troca-troca (mais uma foto) e segui para a parada de ônibus. Achei meio confusa, com um mundo de linhas e sem muita identificação. Gente para todos os lados, vendedores de refrigerante e picolé e o calor que já se fazia fortemente presente. Embarquei em um ônibus que me indicaram, disseram que levaria uns trinta minutos. Mas como eu não vi o shopping, tonto, fiquei uma hora e dez naquele coletivo indo parar no ponto final do ônibus. Fim de linha, literalmente, onde se confirma a máxima que o poder público realmente não chega ou demora a chegar às periferias dos grandes centros. Como eu, quem sabe ele esteja de férias também e sem muita pressa. Ainda assim não tinha nenhum aspecto desagradável, pelo contrário, não me remeteu a nenhum quadro de pobreza extrema. Via-se, porém, a falta de serviços, as ruas não eram todas asfaltadas, algumas vielas estreitas, passeios disformes, lugares com esgoto a céu aberto parecendo que o básico do básico quem sabe fosse artigo de luxo. Não é uma crítica direta à cidade, até porque poderia ser este o relato de qualquer cidade brasileira.

Permaneci no ônibus que na volta me deixou em um shopping em obra de expansão. Não gosto muito de shoppings, ainda mais em viagem de turismo: corro o risco de soar despreparado, trocar as belezas da cidade por qualquer ar condicionado. Mas não teve jeito, a fome e o cansaço já me abatiam. Almocei e fui ao cinema, na busca de ar condicionado e poltrona confortável. E assim acomodava-se mais um dia.

Ainda tive tempo de me apaixonar pela cajuína e beber umas três ou quatros garrafas do doce ouro piauiense. Quis levar mais uns tantos de garrafas comigo, mas na mochila já não cabiam mais coisas, ficando um amargo gosto no final, de saudade e quero mais. Teresina, uma cidade mágica que soube me cativar em apenas um dia, começando pelo café da manhã, a sua gente, suas ruas, belezas, com direito a ônibus errado e cajuína geladinha. Descobri que quando nos despimos de preconceitos e pensamentos montados pelos outros, enchemo-nos de vislumbre e daquela inocência que cerca as crianças: o fascínio pelo novo e a vontade de viver, conhecer e prender-se a todos os detalhes. Vi o novo, o diferente, e gostei. Achei bonito. Achei bonitas as diferenças entre cidades e regiões. Achei bonitos os sotaques, cada qual com sua entonação. Sem contar a diversidade culinária que vai do arroz com capote ao cuscuz, passando pela carne de sol, e que é aprazível a todos os sentidos. Ou ainda as manifestações culturais e experiências individuais de vida, que nos torna essa coletividade difusa. À noite fui para Petrolina transformado, um ávido defensor de Teresina, com a expectativa que eu possa voltar a vê-la e com a certeza que ela não é somente para um dia.

Super Bacana
Enviado por Super Bacana em 19/08/2013
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