retrato momentâneo

olho triste o pôr-do-sol depois de levantar de minha cadeira verde musgo acolchoada e giratória, e ponho meu rosto próximo a janela de vidro que dá para uma larga e movimentada rodovia, onde os carros passavam sem nem sequer notar minha presença naquela janela.

meus pés estão me matando, talvez eu tenha algo melhor essa noite; que seja mais alegre que minhas recordações.

desço a escada, com calma, sem me apoiar na parede, uma mão no bolso e outra segurando um caderno; um simples “tchau”, como sempre; vou saindo lentamente, até esqueci que sempre esqueço algo na gaveta de minha mesa de mármore.

tento a primeira, a segunda, e na terceira tentativa, consigo chegar ao canteiro central da rodovia, que sempre brinca com minha vida; mais algumas tentativas e consigo chegar ao outro lado.

fico ali olhando o céu já quase-que-totalmente-escuro, onde na verdade não estou vendo nada.

decido não seguir como de costume, e começo a caminhar, sem direção, sem pretensão, nem devoção ao passado, mas sim, apenas àquele momento em especial.

alguns cachorros passam a rodovia, os cães também brincam de sobreviver com a rodovia; os carros continuam passando e é como se eu não estivesse ali, como se eu fosse paisagem, um poste ou uma simples árvore.

eu sigo e abandono o caderno, que já se tornava um peso pra mim, e também não queria fazê-lo de testemunha; começo a percorrer ruas nunca vistas (por mim); as pessoas me olham como estranho como algo extraterreno.

eu sento solitariamente em um enorme banco de madeira, de uma enorme praça deserta, de longe sinto o cheiro de um suave e provocante perfume, fecho um pouco os olhos, aperto-os bem forte, inspiro com todo o meu fôlego aquele aroma que cessa vagarosamente.

então continuo minha jornada; vejo crianças sujas, rios sujos, casas sujas, roupas sujas, vidas sujas, pessoas em cima de pessoas; vejo o descaso e a incompreensão; uma criança com cerca de 95cm para bem no meu caminho, com os cabelos sujos e grandes, unhas dos pés e das mãos enormes, apenas com um short vermelho totalmente desbotado, com uma mão esfregava o olho direito, com a outra mão tentava limpar seu nariz; recolho todo o dinheiro que possuía no momento e compro pão e leite. dou ao pobre indivíduo, que não entende ainda o que é compaixão, mas seu olhar foi o suficiente para me agradecer.

sigo, e sigo como nunca pensei que seguiria, um caminho longo, que fica mais longo com a chuva que começa a cair.

olho pro céu e só vejo recordações, abro minha boca e sinto as gotas; estendo os meus braços e sinto em todo o meu corpo.

junto com a chuva escorre em meu rosto algumas lágrimas, que se somem no meio da alegria da multidão.

mas eu não desisto de seguir, não; em ruas estranhas as mulheres se vendem, algumas por dinheiro, outras por prazer, algumas assumem, outras não têm caráter.

continuo caminhando e começo a sentir aquela forte brisa que vem do mar, que embaraça meus cabelos, me resfria a alma; de longe vejo o mar; paro um pouco sobre as pedras, enquanto as ondas vêm e vão, espumando na areia do lado e surrando as pedras aos meus pés; as folhas dos coqueiros, das árvores, dos arbustos, todas agitadas, tentando lutar contra o destino; um casal ainda feliz, lá longe deitado na areia olhando o céu, o mar, fazendo juras de amor, fazendo planos para um futuro que talvez não chegue nunca.

algumas crianças, limpas, com boas vestes, de cabelos limpos e penteados, brincando com algo importado, enquanto outras crianças brincam com carros importados atropelando inocentes.