Já fazia 5 meses que eu estava morando sozinha no quinto andar daquele prédio. Eu havia comprado o apartamento 501. O 502 continuava vazio. Talvez fossem as histórias que se contavam a respeito da falecida proprietária, uma senhora que, segundo as más línguas, era o cão em figura de gente. Alguns a chamavam de bruxa, outros de feiticeira, havia ainda um ou outro que atribuía as suas maldades a alguma insanidade mental. O fato é que, depois de sua morte, os filhos não conseguiram alugar o imóvel por muitos anos, devido aos boatos que se espalhavam de que a casa era mal assom-brada. Uma noite, entrando em casa, ouvi barulho de pratos e panelas e vi luzes acesas. De uma certa maneira fiquei aliviada por saber que, daquele momento em diante, já não estaria só, naquele andar. Algum incauto alugara o apartamento. Talvez fosse um estrangeiro ou alguém que, como eu, não acreditava em alma do outro mundo.
As semanas se passavam, mas eu não conseguia ver quem eram os habitantes. Sim, porque era mais de uma pessoa. Eu só conseguia ouvir a voz do homem. Ele chegava do trabalho antes de mim e saía depois, por isso nunca nos cruzávamos. Quem seria a sua parceira? Eu não lhe conhecia a voz. Só ouvia a dele. Ou seria um parceiro? Hoje em dia está ficando tão comum dois homens viverem como marido e mulher que eu já não estranharia se os visse à porta, se despedindo com um beijo na boca. Fosse mulher ou homem, devia ser uma pessoa apagada porque nunca respondia ou, se respondia, o fazia em voz inaudível. O homem tinha uma voz forte, poderosa e muitas vezes o ouvi dizer: Não quero que você faça isso. Não repita esse comportamento ou não deixo mais você sair. Outras vezes ele dizia: coma, isso faz bem para os seus ossos. Não quero ver você doente amanhã ou depois. Seria ela uma mulher velha, com osteoporose em último grau? A minha imaginação fértil já estava imaginando um homem jovem - a voz parecia a de um jovem, no auge dos seus 30 ou 40 anos - e uma mulher de 70 com a qual ele se havia casado por causa da fortuna dela.
Algumas mulheres, por carência, se sujeitam a coisas que até Deus duvida só para terem a "honra" de terem um homem ao lado, como se elas, sem eles, não fossem pessoas inteiras. Podia ser também um filho mau e uma mãe ou pai doente. Não, essa hipótese estava descartada porque muitas vezes o ouvi contando seus problemas mais íntimos para essa criatura. Problemas de ordem psicológica, do tipo..."você pensa que é fácil para mim conviver com essa incapacidade de ser pai?" ou problemas financeiros, como..."sabe quantas prestações ainda faltam para quitar a casa?" ou ainda problemas com os colegas do escritório, tais como..."eu ainda mato aquele sujeito que fica perturbando a minha vida o dia inteiro, eu tenho medo de não aguentar e perder o controle". Outras vezes eram as contas intermináveis dos cartões de crédito que o atormentavam e ele dizia: você diz isso porque nunca teve esse problema, Frida. Eu não sabia o que era "isso" porque não lhe ouvia a voz, mas agora já sabia que era ela e que se chamava Frida. Nas minhas conjecturas eu já estava visualizando uma criatura surda. Era isso! Surda-muda. Respondia por sinais e lia os lábios dele. Só podia ser isso. Ele falava muito alto. Deve ter desenvolvido esse hábito com a evolução da doença da criatura. Cada vez foi falando mais alto porque ela ia perdendo a audição e ele ia aumentando o seu tom. Eu tinha que tirar isso a limpo porque já não conseguia prestar atenção às minhas leituras, já não podia desfrutar de um filme, já não me concentrava nos meus estudos. Ele me atrapalhava com aqueles diálogos, ou melhor, com aqueles monólogos. Vou dar uma de boa vizinha - pensei. Domingo vou fazer um bolo e vou levar um pedaço para eles a fim de dar as boas vindas aos novos vizinhos. Será um gesto simpático, tenho certeza de que vão gostar e eu ficarei sabendo quem é a parceira do meu vizinho.
Seu Zigfried me recebeu muito bem, me ofereceu uma cadeira, perguntou meu nome, me ofereceu um refrigerante, mostrou-me sua coleção de peças de cerâmica, mas nada de me apresentar a tal de Frida, objeto da minha curiosidade. Não havendo mais como prolongar a minha visita e não resistindo mais, lhe disse: recomendações à dona Frida... é esse o nome da sua esposa, não é? Seu Zig, como me pediu que o chamasse, deu uma gargalhada sonora e eu fiquei com cara de boba até que ele me contou que Frida era a sua cadela e sua melhor amiga. Desde que sua esposa, Sara, morrera, ele passou a conversar com Frida, nome que colocara no animal para não estranhar muito - afinal todos dois eram nomes judeus. Ele me confessou que estava achando mais vantagem dialogar com a bichinha - ele achava que dialogava porque ela lhe respondia com olhares que ele entendia muito bem - do que com a falecida. Frida estava sempre de acordo com ele, coisa que dificilmente acontecia quando a conversa era com Sara. Agora, satisfeita a minha curiosidade, posso continuar a minha vida. Comprarei um par daquelas borrachinhas que surfistas usam nos ouvidos para não entrar água e continuarei a ler, escrever ou, simplesmente, ver um filme na TV, só lendo as legendas, naturalmente, porque seu Zig vai continuar falando cada vez mais alto e me atrapalhando.
edina bravo
Enviado por edina bravo em 26/08/2013
Reeditado em 24/09/2018
Código do texto: T4452220
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