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Apenas  Uma  Eventualidade
                      

Nunca passou pela minha cabeça em ser professora. Meu sonho era mesmo ser comissária ou jornalista mas como, se o meu Pai nem deixava eu dormir na casa das minhas primas num fim de semana qualquer? Lembro muito bem dele ter dito uma vez em uma conversa com seus amigos que jamais pagaria uma faculdade de jornalismo para sua filha por que segundo ele uma mulher solteira viajando pelo mundo afora sozinha na certa perderia o rumo de casa além de outras coisas.

Entrei naquele edifício cuja placa se lia o nome: Instituto Roosevelt, não apenas para avaliar o meu inglês mas também para fugir da chuva que caía sem piedade e parou o transito infernal de Sampa.

Tinha acabado de voltar de Salvador com a minha Mãe e estava fascinada pela Bahia de todos os Santos de Jorge Amado. Mais encantada ainda pelas praias, o mar e o acarajé no tabuleiro da baiana de Dorival Caymmi, sem mencionar no tempero afrodisíaco do baiano. Se toda menina baiana tem um jeito que Deus deu, podem acreditar que o baiano também foi generosamente abençoado pelo Pai todo poderoso. Como não querer retornar à Bahia e desfrutar daquela preguiça gostosa à beira do mar de Pituba com aquela piscina natural numa tarde qualquer ao som de Vinícius e Toquinho ao fundo. Mal cheguei à São Paulo e fui logo implorando ao meu Pai que queria voltar à Bahia nas próximas férias e ele  respondeu bem rápido, "Você acha que o meu dinheiro nasce numa árvore? Tem Fuvest no fim do ano e você precisa estudar. Quem sabe, fazer o curso do Anglo para se preparar melhor. Isso sim, é um ótimo investimento!" E eu lá queria saber de me matar de estudar no Anglo depois de ter descoberto a Bahia? Que nada! Queria descobrir mais sobre aquela terra e seus mistérios. Mas como, se o 'patrocinador' não estava querendo bancar a minha diversão! O jeito era trabalhar mas, no que? O que uma garota de 17  anos pode fazer pra conseguir um bom dinheiro para viajar? Ah! Um trabalho honesto e digno, certo!? Subi as escadas daquela escola de idiomas resolvida em avaliar o meu inglês e saber se conseguiria um emprego para conseguir realizar o meu sonho de consumo.

Fiz o teste escrito e acertei TUDO! Na entrevista também passei com louvores. A Diretora gostou tanto que pediu que eu ficasse para iniciar o treinamento às 19 hs daquele mesmo dia mas expliquei que estava no Centro desde às 13 hs fazendo pesquisa na biblioteca e já eram 17:30. Tinha apenas o dinheiro para voltar para casa e já dava para ouvir o meu estomago reclamando da fome. A Diretora gentilmente ofereceu o dinheiro para eu lanchar um baurú e tomar uma Coca-Cola. Claro que aceitei mas antes teria que avisar a minha Mãe sobre o meu sumiço. A Mrs. Betavas me deixou à vontade na sua sala e liguei explicando tudo à minha Mãe. Avisei que chegaria por volta das 22 hs mais ou menos e para não se preocupar comigo mesmo sabendo que ela já estava toda descabelada com aquela minha ida ao Centro para fazer um trabalho na Biblioteca Mário de Andrade e ter acabado no Instituto Roosevelt fazendo um teste de admissão para Professora de Inglês.

Fiz o treinamento todo que levou três longos meses. Eram cerca de 5 horas todos os dias, até aos sábados! Nem acreditei quando a Diretora, Mrs. Betavas me chamou na sua sala e me informou  que eu havia passado. E o mais legal de tudo era ter sido a 'trainee' mais bem colocada! Primeiro lugar! Uau! Um grande número de candidatos havia sido treinado com o método exclusivo do Joseph Troster, fundador e dono de todos os cinco Institutos Roosevelt. Todos os 'trainees'  eram mais velhos e muito mais experientes do que eu, por isso o tamanho da minha felicidade que explodiu quando a Diretora me deu um abraço de parabéns bem forte que nunca vou me esquecer.

Durante todo o treinamento a Connie Betavas pegou no meu pé. Ela exigia muito mais de mim do que dos outros aprendizes. Eu ficava fula da vida com isso por que eu era crua de tudo e ela fazia questão em destacar certas falhas minhas dizendo  que eu poderia aprimorar isso e aquilo. Eu só sabia falar inglês tão bem por que morei nos EUA e foi lá que me alfabetizei.  

Quando terminou de divulgar os nomes dos futuros professores, ela me chamou à sua sala e disse, "Sabe por que fui mais dura e severa com você, Patricia?" Balancei a cabeça que não e ela respondeu com aquele belo sorriso dela, "Por que eu lapidei você e você vai ser a minha melhor professora nessa escola! Apenas mostrei a você o que você é capaz de fazer com os seus talentos. Ensinei a você a não ter pressa enquanto estiver na frente daquele quadro negro, também como controlar a sua voz sem gritar nem falar baixo demais para os seus alunos entenderem cada palavra que você pronunciar. A sua plateia espera o seu melhor e eu sei que você vai usar todo o seu know-how para ensinar cada um deles. Também tenho certeza que você não vai me decepcionar e nem aos seus alunos." Aquela sul-africana loira de olhos azuis me passou uma peteca daquelas! Quanta responsabilidade! Mas naquele momento eu pensei que se a Mrs. Betavas, a Diretora de Cursos, botava tamanha fé em mim, eu só poderia acreditar. E eu acreditei.

Iniciei a minha carreira de professora no mês de setembro de 1978 no Instituto Roosevelt da Rua 24 de maio, a maior das cinco escolas do Joseph Troster. O Instituto Roosevelt não fazia propaganda como as demais escolas de idiomas por que não precisava. A propaganda era de boca em boca. Quem estudava no Roosevelt sempre recomendava a escola  aos familiares, amigos e colegas. Por isso não era nenhuma surpresa  se eu descobrisse que dava aula para uma família inteira e/ou colegas de trabalho em diversos horários por que você acabava descobrindo pelos textos que eles  mencionavam alguns detalhes semelhantes. As escolas eram bem localizadas e de fácil acesso a todos os alunos, desde aquele que tomava ônibus e/ou metrô até os mais privilegiados que moravam em Higienópolis e perto da Paulista. Além do mais, que adiantava eu dar aula na Berlitz da vida, que era a escola mais chique e cara de São Paulo, se suas escolas ficavam contramão e o 'pay' era metade do que eu ganhava? Estava muito feliz com o meu 'trampo' que me oferecia condições para juntar uma grana para minhas férias na Bahia. Férias de dezembro que com certeza seriam estendidas até o Carnaval! Era a minha intenção até que ...

Quando dezembro chegou com a temporada  da rematrícula, maioria dos professores já estava com os nervos na flor da pele. Ninguém havia me contado sobre a fase 'Dia D' de rematrícula então fui direto à fonte pra perguntar.

A Diretora me informou que havia tido uma reunião com o staff de professores mas como eu estava estudando para provas na escola, ela não queria me estressar. E eu indaguei, "Mas Connie, tá todo mundo nervoso com essa tal de rematrícula! Por que?" E ela respondeu, "É que muitos professores perderam alunos durante o curso por um motivo ou outro. As secretárias fizeram um levantamento sobre as causas das desistências e alguns motivos não foram bem aceito pelo Departamento de Cursos, nem pelo Financeiro. Mas você fica sossegada, honey. Você teve quase 90% de rematrícula. Desistência: apenas dois e ambos justificados por que seus alunos estão desempregados mas juraram que voltariam assim que estiveram empregados. E você, só recebe elogios Patricia!" Agora entendi por que alguns Teachers me olhavam meio torto e me chamavam de Caxias. Apenas fazia aquilo que a minha Diretora havia me ensinado e fazia com o maior esmero, prazer e amor. Corrigia muita lição de casa e estava sempre de plantão para esclarecer as dúvidas dos meus alunos enquanto outros fumavam e tomavam café tranquilamente no terraço que tinha uma vista vasta da Avenida Ipiranga e a Praça da República.  Os  professores, com mais tempo de casa, mandavam as secretárias  dizer que estavam 'ocupados' aos alunos e que não atenderiam ninguém naquele momento.

Os meus planos para viajar já não pareciam tão atraentes. Como sair de férias estendidas se as aulas começavam em janeiro? Sim! Janeiro!!! A escola tinha um tal CURSO DE FÉRIAS gratuito e a Diretora me convocou para ser um dos teachers do tal curso. Eu timidamente revelei o meu plano meio que ousado de ficar fora uns dois meses e meio mas ela simplesmente me encarou com aqueles olhos azuis de leonina puta da vida e disse, "Vai mesmo abandonar os seus alunos?" Em que saia justa eu me encontrava  agora! Praticamente chorei ao confessar, "Pôxa Connie! Trabalhei muito! Não faltei nenhuma vez! Dei aula todo sábado das 8 até às 16 hs e ainda substitui vários professores no período da manhã quando você me pediu! Acho que mereço, poxa!" Ela respondeu com desdém, "OK. Pode ir mas quando voltar não sei se vai ter turma para você por que vou distribuir no início de fevereiro e você vai voltar só depois do Carnaval pelo jeito, né?" Aquela mulher me pegou de jeito com aquelas palavras naquele tom de 'vai com Deus!'. Tirei um momento e ponderei. Aí ela veio com uma solução: "Que tal você sair de férias como todo mundo vai fazer, voltar para o curso de férias e quando for Carnaval eu dou um jeito pra você curtir a sua Bahia por duas semanas?" Peguei o calendário da mesa e dei uma boa olhada. Pensei ... É nada mal. Respondi, "E o meu salário? Como fica?" Quanta diferença da Patricia que recebeu o primeiro cheque e esta que negociava agora com a Diretora!

O meu primeiro 'pay day' jamais vou esquecer! Ao receber o meu primeiro cheque  fitei aquela folha  de papel com muita surpresa. Recebi o equivalente a três salários mínimos e indaguei à Diretora de Finanças se aquela quantia estava correta. Ela me mostrou as horas/aulas e o quanto eu ganhava por hora mais os descontos, quinta semana, etc e tal. Ainda não acreditava que eu ganhava mais do que a faxineira que passava o dia inteirinho lá se matando de limpar aquela escola. A Diretora de Finanças me perguntou, "Então, tudo certo, Patricia?" E eu, "Você tem certeza que TUDO isso é mesmo meu, Eiko?! É que ... " E a boba aqui ainda foi filosofar sobre o PT, igualdade e a pobre faxineira que se acabava de matar em limpar aquela escola todos os dias. Nossa! Como eu era ingênua! A Diretora de Finanças olhou bem para minha cara de deslumbrada com aquela quantia de três salários mínimos e disse, "Se você acha injustiça então dá o seu cheque pra faxineira mas, primeiro assina aqui para provar que eu lhe entreguei esta fortuna, ok?" É, o mundo dá voltas e a gente aprende. Como aprende! 

Agora eu estava negociando, querendo férias e certas regalias e ainda manter os meus ganhos sem cair em nenhum prejuízo. A cabeça da Patricia Petista ficou de lado nessa hora. A Diretora de Cursos repetiu a oferta e eu aceitei sorrindo feliz da vida.

Aproveitei ao máximo as minhas primeiras férias! Tanto as de dezembro/janeiro quanto a do Carnaval. Valeram muito por que voltei com a pilha toda recarregada para mais aulas e ainda o Cursinho Pré-Vestibular aos sábados após as aulas que dava no Roosevelt.

Não sabia naquela época mas, o meu primeiro emprego serviu como uma luva para mim. Foi realmente uma 'ESCOLA' onde aprendi muitas coisas que carrego na minha bagagem profissional até hoje.

Não dou aula por causa de dinheiro. Dou aula até hoje por que amo o que faço e mais ainda por que eu aprendo todos os dias. Apenas sinto muito que o ensino não esteja tão bem estruturado para educar de forma mais lúdica e direcionada  as crianças e os jovens de hoje. Me parece que as universidades ou os seus professores estão mais preocupados em apenas encher o futuro do Brasil com linguiça sem se preocupar com a qualidade e conteúdo.  Hoje, o professor se prepara para sua  missão como se fosse um soldado da  Tropa de Elite. Eu sei por que já tive colega muito FDP que não deu pra ser engenheiro e virou professor de matemática ou de física. Duas matérias que geralmente tiram noites de sono de qualquer ser são e deixam olheiras profundas!  Já tive 'Burn Out' e acreditem, não é fácil.  Agora, algo muito irônico que ouço é o  seguinte: "E o que mais você faz além de 'só dar aula'?"

Hummm ... vamos ver: Professora dá aula o dia todo por que meio período não paga suas contas; leva prova  pra casa para corrigir; faz o plano de ensino; prepara suas aulas e  provas em pleno fim de semana e também em feriado; sonha que está dando aula e quando acorda vai logo alterando detalhes nas aulas que preparou; dá carona para alunos e também é fã dos alunos que tem banda de rock.   Também faz papel de mãe de aluno, conselheira, psicóloga ... e sempre com todo cuidado do mundo e muito amor. E também tem família para cuidar quando não está dando 'só aula'!

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Não posso reclamar por que os meus alunos reconhecem a minha dedicação e empenho em passá-los com toda a minha generosidade o conhecimento que tenho. Não sou nada egoísta mas já fui super ciumenta com os meus alunos até que um dia uma turminha que tinha se revoltou por que após dois anos eles iriam mudar de 'Teacher'. Foi uma choradeira geral e foi aí que percebi o quanto fazia mal ser tão apegado aos alunos e eles a mim.  Demorou um pouco mas aprendi a desatar os laços por que só mesmo assim a gente aprende a crescer e eaventurar por novos caminhos. O bom é que quando a gente menos espera, sempre tem reencontros gostosos! E aí,  é uma delícia total!  Abraços, beijos, elogios ... e a 'Teacher' vê o quanto aquele ser que ela ensinou evoluiu  como pessoa.

Isso tudo tem um valor inestimável! 


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Calada Eu
Enviado por Calada Eu em 27/08/2013
Reeditado em 31/08/2013
Código do texto: T4453964
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