CAUSOS DO ZÉ DINO

Uma Manhã na Fazenda

O dia amanheceu ensolarado. As vacas mugiam no curral da minha casa. As galinhas cacarejavam anunciando que no ninho havia ovos. O café coado na cozinha por meu velho pai exalava um cheiro de família despertando para as adversidades do dia. Ouvi meu irmão reclamando com meu pai “não vou à colheita do feijão, só se Mariana for...” Mariana estava na cama, resfolegando na sua milésima revolução contra o sono que insistia em não lhe deixar abrir os olhos, naquela idade que somente às necessidades biológicas a faziam sair da cama. “Mariana vai com você” respondeu o meu velho pai.

As vacas adentravam o pequeno estábulo, já com as patas semi-abertas, tão acostumadas estavam em deixar entrelaçar as suas pernas pelas cordas que meu pai mantinha nos ombros. Elas se enfileiravam como se possuíssem senha para o fornecimento do leite, feito fila de INSS. Primeiro era a Laranja, nome da vaca de cor alaranjada, que fazia continência e respondia presente com um gesto com a cabeça e se encaminhava para o seu ritual. Meu pai conversava com ela que lhe obedecia como se entendesse os seus ordenamentos... Arruma! Arruma! E ela se posicionava alta e esguia e o leite começava a respingar assim que meu pai colocava o bezerro que lhe dava ligeiras e carinhosas cabeçadas em seu úbere.

As grandes canecas brancas de ágata, com suas bordas descascadas pelas guerrinhas de caneca que batiam uma nas outras nas brincadeiras de criança, surgiam por entre as tabuas da cerca, cheirando a eucalipto, para que o meu velho pai as enchesse de leite com pequenas apertadelas no peito da vaca.

Um a um íamos nos refestelando da mistura amarronzada do café com leite gordo que nunca mais consigo igual, talvez porque naquela mistura, além do café com leite, havia paz, segurança, amor e o meu pai nosso porto seguro. Felicidade completa, que só se consegue com estes ingredientes.

Nosso pai, com aquele jeito que só ele tem, começava a nos contar as bravuras e façanhas dos seus tempos de rapaz, Façanhas infindáveis, que até hoje não se repete. Assim era o começo do nosso dia. Estávamos prontos, cada um para sua jornada e meu irmão para a colheita do feijão e, é claro, convencida por meu pai... Mariana também vai...

A Colheita do Feijão...

O sol despontava no horizonte, num dia típico de verão. Estávamos prontos para encaminharmos para a colheita do feijão como meu velho pai havia determinado.

Mariana, menina esperta, não estava nem um pouco preocupada com o feijão, aprontava quitutes na dispensa. Seus pensamentos estavam longe, nos devaneios de criança, imaginava um grande “pic nic”. Colocou vários pacotes, delicadamente em uma bolsa de cor alaranjada com grandes alças marrom, exageradamente grande em proporção ao tamanho dela, pois, ao pendurá-la no ombro a bolsa tocava o chão, havendo necessidade que papai, usando a habilidade que sempre lhe foi peculiar, improvisasse um grande nó.

A ”riba” dizia meu pai.

Aquele caminho, que não passava de uma trilha cortando o capim verdejante, parecia não ter mais fim.

As vacas já haviam cumprido o dever matinal e se espalhavam pelas colinas.

Subíamos a passos lentos, sem a mínima pressa e tínhamos a sensação que em breve tocaríamos o azul do céu com nossas próprias mãos. A conversa fluía como se tivéssemos somente aquele momento para discutir assuntos da vida inteira. Meu irmão ansiava por chegar ao pico do morro, pois de lá, sim, poderíamos ver seis cidades de uma só vez que meu irmão nomeava, animadamente, uma a uma. Afinal eram 1.307 m. de altitude que hoje sabemos ter, mas, que naquela época sequer sonhávamos em poder medir.

Enormes pedras do tempo dos dinossauros apareciam em nossa frente como se em remotas eras tivesse havido chuva de meteoros e elas se espalhassem por todos os lados. - Meu Deus, meu pai tem terra demais... Meu irmão dizia, se referindo à longa distância que havíamos de percorrer. .

De repente, Mariana olhou para o irmão com semblante de preocupação que logo foi notado por ele, tamanho era o laço de carinho que os unia, ao perceber as enormes nuvens que se formavam no céu. Nuvens escuras que tinham a cor das pedras dos dinossauros. Raios iluminavam todo o vale, já distante, lá em baixo, pois, já havíamos subido quase a totalidade do percurso.

Não havia a menor possibilidade de voltar.

Mariana utilizando seus 98.8% de proteção em relação aos que lhe são caros, procurou uma solução. Olhando para o alto indica a pedra maior de forma triangular, colocada propositadamente com a base para baixo formando “uma gruta”, talvez projetada por algum ”exímio engenheiro”, onde meu velho pai, às vezes, colocava uma ovelha que insistia em desgarrar do rebanho. Ainda estavam lá os vestígios da última.

A lavoura estava a poucos metros, quando a chuva começou a cair, torrencialmente. Momentos intermináveis. Mariana e o irmão ficaram abraçados esperando o fim daquela tempestade que não tardou a acontecer, como é comum nas chuvas de verão.

A imagem do horizonte, vista após a chuva em tamanha altitude, estava definida ainda com a as gotas coloridas pelo sol que acanhado desapegava das nuvens, formando um arco íris que emoldurava as seis cidades para a felicidade do meu irmão. Era uma coisa inebriante. Nem os grandes pensadores seriam capazes de definir a magnitude daquela cena. Até hoje não consegui outra igual.

Talvez não dê mais para colher o feijão... Ouvimos a voz do meu pai que apavorado vinha nos resgatar... Este sim com seus 100 por cento de proteção, que ainda hoje persiste. Sentia-se aliviado por perceber que estávamos bem.

“““ “““ Mariana diz em sua sagacidade de menina: - O feijão não papai, mas, o” pic nic” vamos fazer.

Colocou, rapidamente, a toalha e as guloseimas que havia trazido sobre o mais lindo de todos os cenários, cenário de fazer inveja até mesmo aos mais renomados pintores e sonhado até pelo Nelson, meu amigo e grande fotógrafo, que neste instante faria a sua melhor fotografia... E assim se deliciaram e, é claro, Mariana até hoje não sabe o que é colher um grão de feijão. Preferiu a festa do final da colheita do café... Onde o Zé “Pasquim” se embebedou...

O Porre do Zé Pasquim...

Mariana acorda cedo. Não se trata de um dia normal como outro qualquer, mas, sim de um dia especial daqueles pintados nas cores de domingo.

No terreiro, montanhas de café denunciam que a colheita terminou. Os funcionários estão alvoroçados, inclusive, os que provisoriamente se alojavam em uma tulha próxima ao terreiro. Mariana se sentia aliviada, pois, não haveria mais as brigas dos Tobias que se faziam acontecer todas as tardes ao final da jornada de trabalho. Meu Deus como eles não se entendiam! Isto não vai acabar bem! Um dia ainda se matam! Profetizava Mariana.

Os Tobias, naquele dia, acordaram cedo, e alvoroçados, conversavam animadamente, sobre a festa que meu pai organizava para comemorar o final daquela safra.

Vinho, muito vinho, cachaça de todas as marcas para satisfazer o gosto de cada um. Comida, das mais variadas, estavam sendo preparadas na cozinha da fazenda.

Só na tulha eram cinco da família Tobias, que todos os anos participavam daquela grande empreitada. Os outros vinham de sítios vizinhos para aproveitar as diárias fartas que meu pai fornecia aos apanhadores. Zé Pasquim chegou cedo. Mariana observava tudo e perguntou ao pai por que Zé Pasquim tinha os olhos arregalados. Meu pai satisfazendo a curiosidade da menina, responde prontamente: Zé Pasquim levou um tremendo susto quando nasceu ao ver a mãe. Arregalou os olhos e nunca mais voltou ao normal. Mariana ficou o dia todo, a imaginar como seria a mãe do dono dos olhos esbugalhados.

Já passava das onze horas quando a festa começou.

Atendendo meu pai, ninguém trouxe para o almoço a tradicional marmita, que em sua maioria continha: arroz, feijão e ovo frito e para o café da tarde, basicamente traziam em uma garrafa de cerveja ou guaraná o café com leite que era misturado com farinha em uma caneca de alumínio.

Além dos apanhadores vieram também os donos dos burros e das boiadas.

A lavoura ficava na encosta do morro, lá em cima. Bem perto do topo e o transporte era feito em grandes balaios feitos de bambu no lombo dos burros e nos carros puxados pelos bois que desciam fazendo um barulho ensurdecedor provocado pelo atrito do eixo de madeira e a “mesa” do carro onde eram colocados os balaios de café.

O café era espalhado, em camadas finas, em terreiros feitos de cimento grosso, onde eram secos pelo sol e acondicionados em sacos de estopa marrom. Tudo feito manualmente, longe das máquinas e suplementos agrícolas, sequer sonhados pela comunidade da fazenda naqueles idos anos 70.

Os sacos eram costurados com enormes agulhas e um barbante que, na maioria das vezes, meu pai tirava do próprio saco desfiando seu acabamento.

Os assuntos eram dos mais variados. Uns diziam: a varredura é melhor para a bebida. O que significava que o produto que caia no chão e era juntado com uma pequena vassoura feita com ramos de “guanxuma”, erva daninha que alastrava em todo o cafezal. Outros discordavam, dizendo:... A melhor bebida se faz com os grãos que secam no galho. Mariana ficava "tonta" imaginando, com surpresa, a infinidade de bebida que aquela fruta fornecia. Para ela não fazia a menor diferença, só notava o amargo e o doce do café, mas, isto atribuía à quantidade de açúcar.

Piadas eram contadas e o nível delas se media pela quantidade de bebida consumida.

A festa rolava solta, quando Maria “goela” veio avisar meu pai que seu irmão estava à beira da morte tanto era o sangue que colocava pela boca e nariz. Meu pai nos seus cem por cento de proteção corre em socorro de Zé Pasquim.

“Meu pai eteno!” Exclama o dono da festa, ao ver o Zé com a roupa toda manchada de uma substância num tom vermelho púrpura deitado sobre a relva.

Como um sábio doutor formado na escola da vida, concluiu que o sangue ao qual Maria se referia se tratava da imensa quantidade de vinho consumido pelo Zé e que agora voltava em grandes golfadas.

O Zé estava bêbado!

Solução não há, a não ser esperar passar o efeito da bebida. Levá-lo-emos na casa da mãe.

Mariana, esperta subiu no carro do pai, um Jipe ano 1951 de cor verde dos que eram usados nos exércitos e na cavalaria da época. Não perdia um lance do desenrolar dos fatos.

Rumaram à casa do Zé. A irmã num soluço só, durante a trajetória, afirmava que meu pai havia matado o Zé, pois, este não emitia mais nenhum som e tampouco algum movimento, tamanho o seu grau de embriaguês. Somente o “sangue” lhe escorria pelo canto direito da boca, visto a posição que meu pai o havia colocado com a cabeça recostada no ombro da irmã.

A mãe do Zé apareceu na porta muito assustada, visto não ser comum a chegada de automóvel em sua casa. Era uma velhinha de ar ameaçador que ao ver o filho “morto” alcança a cartucheira no canto esquerdo da porta emitindo sons aterrorizantes.

Rosnando feito um cão veio na direção do meu pai na defensiva do filho que dormia o sono dos justos, tamanho era o seu porre.

Meu pai numa manobra radical, depois de deixar o Zé, toma o caminho de volta e feito Airton Sena numa ultrapassagem perfeita, deixa pra trás a mãe do Zé.

Mariana finalmente compreende o porquê de o Zé Pasquim ter os olhos arregalados.

... E arregalados vão ficar os seus olhos na chegada do Exército com trinta carros de Infantaria na fazenda do Avô...

O Exercito chegando...

No horizonte a cor era cinza. Cinza escuro, a cor daqueles dias em que antecede uma tempestade. No semblante do meu avô transparecia preocupação. Em seu pescoço podia sentir o pulsar de sua veia jugular regando o corpo de sangue.

Meu tio havia sido confiscado juntamente com outros tantos jovens de sua idade, para o “tiro de guerra” onde deveria permanecer em prontidão, caso a pátria dele necessitasse se houvesse guerra ou outras emergências afins comum no regime militar da época.

Tio Luiz se encontrava enfermo, e segundo Marco Polo, amigo da família e médico que o havia visitado, este se encontrava a beira do colapso nervoso total. Não mais comia ou dormia, sendo seu peso perto de quarenta quilos com margem de dúvida de dois pontos percentuais abaixo ou dois acima, como nas estatísticas do IBOPE nas pesquisas eleitorais. Diferente dos noventa e nove, sem margem de erro, que possuía quando adentrou o quartel no começo do ano de Mil Novecentos e Sessenta e Oito. Jovem, forte, musculoso, bonito, desses que hoje encontramos fazendo propaganda de roupa de grife nas colunas da moda, não perdia muito para os artistas de propaganda de cigarros que apareciam nos teatros de resvista.

Meu avô há meses tentava a liberação do meu tio que "servia" a Pátria.

Como poderia uma pessoa servir a Pátria se não conseguia servir a si próprio?

Deputados e Prefeitos foram acionados por meu avô para que interviessem na liberação do meu tio, visto a sua demência e debilidade. Zé Contantino, homem franzino, advogado influente e futuro deputado estadual, liderava o movimento penalizado com a situação.

A ditadura nunca foi tão ditadora quanto na situação periclitante em que o grande fazendeiro e seu filho se encontravam. Por que manter um moribundo enclausurado?

A fazenda estava toda em oração a todas as virgens e santos de plantão que faziam serão em favor do tio Luiz.

Uma reunião, extraordinária, havia sido marcada com os generais que insistiam em dificultar a saída do meu tio da clausura, onde se encontrava desde Janeiro. Meu Deus! Já estávamos em Setembro.

- Meu filho vai morrer! Sentenciava meu avô.

Longe... Naquele fim de mundo, só pombo correio trazia as informações da cidade. No lombo do burro vermelho do meu avô os aviamentos já se faziam prontos. Um arreio todo fabricado em couro cor de chumbo, com grandes fivelas douradas, ornamentando os estribos que meu avô enganchava as suas botinas de couro de boi zebu (espécie de gado vermelho com longas orelhas que eram maiores que as suas cabeças). Por sobre a cela via-se um grande pelego branco, ornamento cavalariço, feito da mais pura e alva lã de ovelha, confeccionado por minha avó, que após tosar a ovelha, deixava à mostra as costelas das "coitadas" que tremulavam nas beiradas do paiol, nos dias de chuva, por conta do frio que sentiam ao serem despidas de suas vestes naturais.

Minha avó fiava a lã - que era colocada em uma engenhoca de madeira com grandes rodas, onde a lã retirada das ovelhas era puxada em fios até formar uma linha com que ela confeccionava imensos cobertores que nos aqueciam no inverno e de sobra confeccionava os pelegos (acessório de montaria), nas cores mais diversas, conseguidas com tinta do tronco das árvores existentes na fazenda, daquelas que se pintavam os rostos dos índios em dias de festa.

O grande cobertor colocado sobre o arreio deixava ver apenas os ganchos de madeira onde meu avô apoiava as pontas do freio, objeto que possuía um tipo de engrenagem de metal que colocado dentro da boca do animal o direcionava, quando se puxava as rédeas pra esquerda ou direita. As rédeas eram feitas de corda e um fio dourado sintético que vinha da cidade grande. Meu avô dizia ser “importado”. Mariana não tinha idéia do que a aquela palavra significava e, jamais ousara perguntar, imaginando em sua cabecinha de criança se tratar de alguma pornografia.

O cavalo estava a postos aguardando apenas alguma noticia sobre a nefasta reunião, para que meu avô se pusesse em cima dele e adentrasse a estradinha que direcionava a cidade que ficava a exatos quinze quilômetros hoje medidos nos aparelhos de GPS.

Por não mais agüentar a ansiedade, dizia com todos os ares de seu pulmão: - Hoje trago o meu filho! Nem que seja na bala.

Momentos angustiantes se passaram... Não sei dizer quantos... Pois, pareceram infindáveis.

Uma grande fumaça de poeira apareceu na curva que havia no caminho e como grandes pássaros verdes, que faziam um pouso de emergência surgiram trinta carros, verde musgo, enfileirados com grandes bandeiras hasteadas e no mínimo cem policiais todos com uniformes impecáveis da cor dos carros, com grandes rifles e metralhadoras empunhados.

Era a visão do inferno.

Amedrontados todos os moradores da fazenda se escondiam, uns no forno a lenha, outros em cilos (depósitos de capim) enormes e outros ainda, rolavam pra debaixo das camas, procurando o melhor local para esconderijo, imaginando se tratar da previsão do apocalipse, onde “as trombetas haveriam de tocar em todos os cantos da terra” e certamente começariam por aquele mais remoto “canto”. o da fazenda do vovô.

Do primeiro carro surgiram homens com fardas verdejantes e nas costas uma cruz vermelha, aplicada, que chegavam a reluzir diante das luzes vermelhas que piscavam sem parar acompanhando o movimento das sirenes que invadiam nossos tímpanos. As cruzes anunciavam Que aquele carro era uma ambulância e que ali havia pessoa doente.

Meu tio surgiu dentre os ocupantes do segundo carro guiado pelos soldados de apenas uma estrela em seus antebraços que significava ocupar o menor cargo na carreira militar. Desnorteado, feito um zumbi, sob o efeito das drogas que lhe eram ministradas, caminhou, cambaleante, em direção ao meu avô que não parecia acreditar no que presenciava.

De joelhos, meu avô agradeceu ao comandante do Exercito. Obrigada por devolver meu filho! O que seria da Pátria sem este seu servidor? E o que seria de mim sem meu amado filho?

Continências e agradecimentos feitos. A fazenda se tornou uma grande festa que durou semanas, até que para alegria desta humilde escritora Dona Mercedes e seus dois filhos se dirigem para a reunião política que aconteceu na Fazenda Capela......

Mariana Quintanilha
Enviado por Mariana Quintanilha em 04/09/2013
Reeditado em 23/09/2013
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