O Mário

Confesso que foi meio casual a minha entrada como aluna num curso de terapias naturais. Início de 1984 e eu querendo continuar crescendo, fazendo vida nova, buscando outros saberes. Numa conversa com um colega, numa reunião nos tempos de plantonista numa entidade de prevenção do suicídio, ele me falou de um curso de massagem que tinha feito. Colega simpático, educado o Renato, mas jamais voltei a saber notícias suas. Desejo que a vida lhe tenha sido amorosa, acolhedora. Você era uma pessoa fina.

Eu estava com um ano de casada e resolvi me matricular no curso de massoterapia chinesa numa escola tradicional em Pinheiros. Coisa complicada: recém-casada, dinheiro contado, o apartamento nem estava pronto e muito menos quitado e morando num cubículo na Vila Sônia. Mas eu tinha um pavor único, monumental e indecifrável de me transformar numa pessoa menor depois de casada. Eu via, ainda naquela época, muitas mulheres definhando intelectualmente após o casamento. Eu me pelava de medo de ficar igual e então eu não fazia bolo, não copiava receita e corria com a determinação de um atleta de São Silvestre de qualquer programa ou conversa sobre culinária. Medo do atraso. Isso mesmo. Nem olhava para batedeira de bolo, para as baixelas e outros presentes que havia ganho tal o pavor de virar uma pacata dona de casa, como uma rosa de Hiroshima, sem cor, sem perfume, sem rosa , sem nada.

Acabei levando quase 30 anos para descobrir o quão bom é preparar uma comida, um strogonoff ou mesmo um simples pão de banana. Eu compreendi que fazer comida é mágico porque agrega pessoas, a boa conversa brota espontaneamente e nada tem a ver com uma suposta “rosa de Hiroshima”.

Em Pinheiros, a rua era elegantíssima. De fronte à Escola, uma igreja que eu entrava todas as manhãs antes das aulas. Lugar de uma paz muito especial, deixando o ruído do trânsito lá fora, na Faria Lima, com os seus poluentes corrosivos e as pessoas sendo arrastadas pelos seus relógios de todas as marcas e modelos. Ali era lugar de uma tranquilidade visceral. Igreja sempre vazia, esperando ouvidos limpos, sem cera, para ouvir um pouco da profundeza do Eterno.

Ali eu conheci o Mário. Um japonês ímpar na educação e no bom trato. Sabia muito e eu, nada. Eu nunca tinha ouvido falar em canais energéticos, seus aspectos emocionais, o ato de se produzir algum tipo de patologia e passei a estudar como nunca. Ciência e filosofia tão próximas a entrar na nossa carne, nas vísceras, na alma.

Mas o Mário até cuidava de mim. Era um senhor que, antes, havia sobrevivido graças ao conserto de relógios e nunca perdera as tradições culturais.

O seu rosto era uma síntese do bairro da Liberdade. Uma história de vida construída em São Paulo com o após-guerra e tinha tudo misturado na alma e na maneira de ser: esforço, educação , singeleza, leitura, disposição para o trabalho e estudo, muito estudo.

Foi com ele que aprendi que cada pessoa é exclusivamente responsável pela sua vida. Até então eu jamais ouvira falar disso. Eu sofria demais com o estado constantemente debilitado do meu pai. Numa aula prática, o senhor japonês passou a mão pelo meu rosto, analisou a minha pele e disse que eu sofria muito.

Instantaneamente eu falei do meu pai.

Ele apenas retrucou – “mas o sofrimento é dele e não seu”.

No momento fiquei chocada, mas o tempo me mostrou que, realmente, cada um é responsável pelos seus sentimentos, pela sua vida e pensamentos.

Eu nunca mais soube do Mário. Um dos melhores companheiros de estudo que tive, que soube ensinar de uma forma despretensiosa, humildemente espalhando sabedoria numa fala bem articulada, mansa e objetiva.

Foi ali, em Pinheiros, que comecei a compreender um pouco de terapia humanista. E comecei a me esforçar enormemente para me tornar pessoa.

Obrigada, Renato, pela dica.

E a você, Mário, os meus mais sinceros agradecimentos. Nunca mais soube do seu paradeiro. Espero que tenha sido muito feliz. Você foi uma lanterna providencial em tempos, para mim, sombrios.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 18/09/2013
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