O cartão do Drummond

Desde a juventude eu passei a ler Carlos Drummond de Andrade. Influenciada por uma prima, a Cidinha, o mineiro de Itabira foi abrindo a minha alma amorosamente e com um leve silêncio para as coisas do mundo. Confesso que, muitas vezes, me senti confabulando com ele, buscando alguma lógica para a arte de viver. Eu era assídua leitora das suas crônicas e o acompanhava também nas suas colunas no Jornal do Brasil. Foi, para mim, um guia cultural, com sentimentos sempre aflorados, deixando a vida viver exuberante muitas vezes em meio a tormentas.

Muito deixei de tomar sorvetes para guardar dinheiro para ir até a Livraria Brasiliense, no centro, para comprar algum livro novo. Também andei muito a pé com o mesmo propósito. Quando comprei “Reunião” foi o auge da satisfação. Fiz essa brilhante aquisição na antiga Livraria do Povo, na Praça João Mendes. Foi um presente para a minha mãe e até hoje, desgastado e com as folhas até ralas, ele, imponente e singular, se apresenta na estante da sala.

Suas reflexões aprofundadas sobre a condição dos cidadãos comuns na época da II Guerra me provocaram empatia gigantesca com aqueles nossos iguais . A sua brilhante “ Carta de Stalingrado” me apontou alguma certeza de vitória da vida sobre a morte, quando “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”, mas a esperança havia de rebrotar , pois

“ Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres, a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem”.

Drummond foi o meu companheiro necessário, fiel na distância, mesmo nunca sabendo de mim. Foi um homem eterno na caminhada. Na minha estada também.

Outras pessoas muito importantes também me ajudaram na formação do caráter, a me tornar sensível, presente, no mundo, tentando apontar algumas alternativas para as barbaridades do cotidiano. Uma delas ainda respira comigo suas inquietações, seus sonhos e projetos. Neusa Barbosa, amiga de quase quatro décadas. Certa feita, ela, então estudante de jornalismo da USP e outros colegas, me convidou para escrever um livro de poesia. Aceitei de pronto, embora escrever poesia não seja a minha grande paixão. Fui escrevendo movida a vinho licoroso de São Roque. Uma produção coletiva, independente, bancada por nós e trataríamos de vender a nossa grande obra : “Ferramenta de poeta”. Algumas reuniões foram feitas num boteco em PInheiros, alguns debates... e pronto: o livro saiu.

Eu não me contive. Providencie rapidamente o endereço do Drummond, fui ao correio e, junto de uma pequena carta, o livro foi enviado.

Dias depois, eu visitava o meu pai, mais uma vez internado no Hospital Oswaldo Cruz. A minha irmã, garota ainda, ao telefone, querendo notícias frescas do pai. Disse que estava melhorando um pouco, etc e tal.

E ela continuou:

- Chegou prá você uma carta lá do Rio.

- Do Rio?

- É.

- Lê o remetente.

- Só está escrito “Andrade” e o endereço.

Foi o maior vexame! Eu, no corredor daquele hospital, me pus a gritar e a pular como uma criança em dia de festa surpresa. Eu me transformara numa síntese de uma pessoa desvairada em plena Paulicéia. Enfermeiras passavam com as suas bandejas repletas de injeções e cápsulas me olhando, com olhar de susto e interrogação... e eu gritando.

Cheguei em casa, abri com cuidado extremo o envelope que veio do Rio.

Eis o conteúdo do manuscrito:

Vera: comigo “Ferramenta de poeta” e a carta que o acompanhou. Obrigado pela conversa com um mais velho que também já sentia as inquietações e alegrias do começo. O grupo jovem de vocês desperta muitas esperanças. E é lindo o trabalho de conjunto que preserva as fisionomias individuais. Um abraço e votos de plena realização, de Carlos Drummond de Andrade.

No dia seguinte, a caravana dos amigos até a minha casa para que todos lesses, pegassem o cartão, passassem os dedos sobre aquela assinatura.

Quando, sete anos mais tarde, o poeta maior veio a falecer, chorei copiosamente debruçada sobre a mesa do quarto do meu filho que estava prestes a nascer. Nunca senti tão dolorosa e profundamente o questionamento : “E agora, José?”

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 18/09/2013
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